Os irmãos Lumière inventaram o cinema. Georges Méliès foi o primeiro a perceber como o cinema podia contar histórias. Colocações como essas soam óbvias aos cinéfilos iniciantes, até o momento em que estes se aprofundam na história do cinema e percebem que elas não são tão precisas assim: antes, durante e depois da popularização do cinematógrafo dos Lumiére, outros dispositivos de exibição da imagem em movimento existiram, assim como alguns meses antes de Méliès, Alice Guy-Blaché já dirigia filmes contando histórias. A história revela-se aí como uma construção essencial ao nosso conhecimento, mas nem por isso definitiva.

É nesse sentido que o documentário “E a mulher criou Hollywood” (Et la femme créa Hollywood, 2016) surge como recurso audiovisual para explicitar uma história que permaneceu encoberta e negligenciada por tantas décadas: o fato de que mulheres desempenharam um papel essencial no surgimento do que viria a ser a indústria cinematográfica mais popular do mundo, a norte-americana.

Inovação só no conteúdo

A importância desse registro faz com que sejamos condescendentes com o fato de que esse documentário não apresenta nenhuma inovação do ponto de vista da experimentação com a linguagem fílmica. Seu formato é totalmente expositivo, calcado em imagens de arquivo, offs, talkins heads e tudo que um filme de não-ficção com cara de que foi produzido para a TV tem direito.

Dito isso, “E a mulher criou Hollywood” traz uma série de informações que só recentemente viriam a ser integradas no cânone do que é a história da imagem em movimento. É justamente essa a característica redentora do que poderia ser uma falha no documentário de Clara e Julia Kuperberg. Destaca-se, por exemplo, a atenção dada à diretora Alice Guy-Blaché, citada por historiadores como mestre do próprio Méliès, mas cujas produções permaneceram ignoradas por teóricos por anos e anos. A partir de um filme totalmente didático como o documentário, todo embasado em pesquisas documentais, torna-se quase um pecado cinéfilo não ter, no mínimo, o nome de Guy-Blaché no vocabulário básico.

“E a mulher criou Hollywood” aprofunda-se especialmente no período do cinema norte-americano até os anos 1920, o ápice da participação das mulheres nas mais variadas funções envolvidas na criação de um filme. De secretárias a roteiristas, montadoras e diretoras, quase metade das produções americanas contavam com pessoas do sexo feminino nos bastidores dos filmes dessa época.

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Somando-se isso a um universo pré-código Hays (que estipulava regras intensas de censura), têm-se aí importantes expressões de diversidade nas narrativas envolvendo mulheres direta ou indiretamente. A chamada “Era de Ouro” do cinema estadunidense se torna ainda mais fantástica ao vermos o quão modernos eram filmes de diretoras como Dorothy Arzner ou produzidos por Mary Pickford. A importância do trabalho coletivo das mulheres na cadeia produtiva cinematográfica também é bastante pontuada, como quando observamos que não apenas na direção, mas em áreas diversas como produção, roteiro, montagem e atuação havia uma liga que dava unidade para a presença e sucesso dessas mulheres na área.

Olhando para o passado, “E a mulher criou Hollywood” constata, chocantemente, que o que se luta hoje em termos de representatividade feminina na indústria a frente e por trás das câmeras era uma realidade de muitas décadas atrás. Tão digno de reflexão quanto é o fato de que a presença dessas mulheres se devia ao status artístico e economicamente marginal que o cinema tinha até essa época, não sendo visto como um “trabalho de verdade” ou “lugar de gente séria”, cenário esse que muda mais claramente ao final década de 1920, quando os estúdios americanos ficam cada vez maiores e o lucro das produções populares começa a se tornar evidente. Resumindo: uma horda de homens toma o lugar dessas trabalhadoras ao ver o quão lucrativa a atividade é.

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Ao mesmo tempo em que o documentário gera esse tipo de amarga reflexão, é também estimulante redescobrir a partir dele trabalhos fascinantes como o de Ida Lupino, um dos ícones da resistência feminina pós-1920 numa Hollywood dominada por homens. De beldade das telas à diretora, roteirista e produtora, Ida merece ser mais que uma nota de rodapé ou item de trivia na história do cinema por sua contribuição a essa arte-indústria, assim como muitas outras profissionais citadas ao longo do documentário.

Do backlash a uma tentativa de retomada de espaço

Essa abordagem combativa ao profundo backlash enfrentado pelas profissionais mulheres no cinema é, não por acaso, outro ponto positivo de “E a mulher criou Hollywood”. Aproximando-se um pouco mais do cenário atual, o destaque a Paula Wagner é emblemático: ela é extremamente bem-sucedida e foi de agente de Tom Cruise a dona de uma produtora com ele, liderando posteriormente também a United Artists – cujo grupo inicial de criadores tinha a atriz Mary Pickford. Ainda que os filmes nos quais Wagner se envolveu (tais como os da franquia Missão Impossível) não tenham gerado colaboração significativa na diversidade de como as mulheres são representadas nos filmes, só de ela ocupar uma função de tamanho poder num cenário de tanta disparidade já é marcante enquanto registro histórico.

Figuras como Paula Wagner ou a diretora vencedora do Oscar Kathryn Bigelow contam, porém, com um elemento a seu favor: serem trabalhadoras do cinema num mundo cada vez mais digital, no qual os processos de arquivamento de obras e preservação são facilitados. Por isso, no segmento de “E a mulher criou Hollywood” no qual se narra como fotos antigas de diretoras ou diretoras de fotografia nos anos 1920 foram encontradas por acaso décadas depois, tem-se noção do abismo entre as pioneiras do cinema e as artistas de hoje; não fossem por essas fotos, não se poderia identificá-las e nem pesquisar quais os seus trabalhos.

Por conta disso, “E a mulher criou Hollywood” é também um documentário sobre a fragilidade da história, a história como construção e a responsabilidade daqueles que fazem tais registros. Por isso mesmo, permanecer ignorante sobre figuras tão imprescindíveis como Guy-Blaché, Arzner, Weber, Pickford, Lupino e muitas outras depois de saber que um documentário tão informativo como esse existe é uma escolha deliberada por ser um cinéfilo mais poser. Como bem pontuou a teórica e crítica de cinema B. Ruby Rich, algo só é tomado como existente a partir do momento em que é nominado, e sem dúvida o filme de Clara e Julia Kuperberg faz um verdadeiro glossário de filmes importantes não só dentro no nicho dos “filmes de mulheres”, mas também de obras apenas fantásticas.

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