Certos filmes, partem de uma premissa um tanto quanto estranha, digna daquilo que denominamos de trash. Contudo, quando ela cai nas mãos de um realizador que sabe extrair nuances psicológicas e sociais dela, o exercício se torna fascinante. David Cronenberg com seu cinema de terror sexual na década de 70 é o melhor exemplo disso, onde através das tramas excêntricas conectava o público aquele mundo bizarro.

O Enigma do Mal (1982), dirigido por Sidney J.Furie é um outro grande exemplar desta categoria e por isso merece um advogado de defesa para sair da obscuridade cinematográfica. Não à toa, que Martin Scorsese o citou na sua lista de filmes de terror a serem descobertos. Enigma é uma boa surpresa mesmo sendo um trabalho pequeno, mas que fisga a atenção graças a ótima construção de terror psicológico e um roteiro acima da média com boas doses de suspense psicológico. Se hoje você adora o terror sobrenatural de Invocação do Mal, Annabelle e Sobrenatural, saiba que esse terror oitentista já sabia como criar medo e tensão em tempos remotos.

Baseados em fatos reais, o longa conta a história de Carla Moran, (Barbara Hershey em atuação intensa) uma mãe solteira com três filhos que basicamente cuida deles sozinha. Seu companheiro trabalha viajando e está sempre ausente. Em um dia normal, ela é atacada por uma força invisível, uma entidade sobrenatural, que pratica violentos ataques sexuais. Imaginando que está enlouquecendo, ela procura pela ajuda profissional de um psiquiatra (o finado Ron Silver, de atuação discreta, mas eficiente) para entender os motivos dos ataques.

O Enigma do Mal faz parte de um seleto grupo de filmes que discutem eventos sobrenaturais sob o prisma do debate científico, presente aqui, no confronto entre a psiquiatria e a parapsicologia. Bebe diretamente na fonte do clássico O Exorcista (1973), ainda que aproximação maior seja com Poltergeist (1982), que devido uma dessas raras coincidências da vida, também foi lançado no mesmo ano deste longa-metragem – Enigma estreou primeiro na Inglaterra e só em 1983 nos EUA para evitar comparações com o filme de Tobe Hooper lançado em 82.

Podemos dizer que o espírito que atacava a família Freeling em Poltergeist é uma versão nutella perto da entidade raiz de Enigma. Na verdade, o espírito é tão maligno e zombeteiro que faz aquele que atazanava Carol Anne, virar uma espécie de noviça. Durante sua projeção, o filme não poupa o espectador de experimentar momentos tensos e fortes por meio da força dramática do seu enredo que flerta com a temática do estupro, discutindo também os efeitos psicológicos deste ato na vida de uma mulher.

Sidney J.Furie nesta época era um ótimo diretor, entrando em um beco sem saída depois de dirigir o caótico  Superman 4 – Em Busca da Paz (1986). Como estamos em 82 e não em 86, Furie parece “possuído” por uma entidade sobrenatural para comandar o show sobrenatural-psicológico no melhor estilo padre Merrin dos infernos. Sob um olhar superficial, a trama soa esdrúxula, mas a direção impõe o tom verossímil necessário que reflete no exercício seguro em desenvolver o clima de suspense e tensão. Neste quesito, o filme é bem econômico e nos seus 3 minutos iniciais revela toda a vida ordinária de Carla para no seguinte chutar o pau da barraca e focar no tormento físico e psicológico sofrido pela personagem e olha que não temos nem dez minutos de filme quando isso acontece.

 As cenas dos ataques são os pontos altos da obra. Bem filmadas, com enquadramentos inusitados que ajudam na sensação claustrofóbica de desespero de Carla. Furie acerta nos sustos mais inesperados que são elaborados de forma artesanal como ferramentas para um envolvente suspense psicológico. A clássica cena de Hershey sendo molestada nua na cama pela entidade, é uma sequência que mesmo 30 anos depois, continua incômoda. Vale ressaltar a ótima trilha sonora instrumental de Charles Bernstein que utiliza sempre um som seco de batida para criar uma sensação invasiva e desconfortante frente ao público, toda vez que a entidade ataca.

O roteiro de Frank De Felitta, baseado no seu próprio livro, é bem sóbrio em transpor para telas, os fenômenos paranormais no âmbito científico e dialogá-los com os conflitos psicológicos de Carla, ao colocar uma pulga atrás da orelha do espectador: Afinal a entidade vista pela protagonista existe na realidade ou tudo não passa de um reflexo do seu desvio psicológico causado pelos vários traumas e abusos sofridos anteriormente na sua vida? O roteiro também não deixa de ser crítico em relação à própria ciência, já que os profissionais médicos e parapsicólogos tratam a situação de Carla com deboche – um deles insinua que são apenas devaneios de uma mulher histérica que está “carente” de sexo. O texto também não deixa de questionar a questão ética em relação aos experimentos científicos de seres humanos.

A atuação de Barbara Hershey precisa ser elogiada – considero a melhor da sua carreira. Ela se entrega de corpo e alma literalmente nas cenas pesadas com uma interpretação que se aproxima muito de Isabelle Adjani de Possessão (1981). A atriz cria uma atuação que fica no limiar da estafa física e mental e reproduz com dignidade o sofrimento que muitas mulheres indefesas sofrem na violência diária das suas vidas.

É claro que o filme tem seus defeitos: os efeitos especiais da época realmente ficaram datados, ainda que a maquiagem de Stan Winston continue impressionante no que consiste os ataques sexuais. O ritmo também oscila no ato final com a chegada da equipe de parapsicólogos e o experimento científico proposto é estapafúrdio de acreditar ainda que Furie encubra estes problemas com o clima de suspense.

Por fim, Enigma do Mal não deixa de ser uma interessante metáfora contra a violência feminina, das mulheres que sofrem com misoginia na sociedade atual. O horror consiste no desespero que é sentir-se no papel daquela mulher, que passa por vários abusos. Tanto é que nenhum dos personagens masculinos do filme demonstra qualquer tipo de empatia pelo seu sofrimento. Mesmo modesto na sua produção – tem cara de filme feito para TV -, Enigma continua uma obra atemporal, principalmente quando notamos que “A Entidade” que aterroriza Carla no filme, sobrevive fora dele no nosso contexto atual, através de falas e visões conservadoras que não apenas estimulam a violência física como propagam o dano moral contra a mulher. É algo ainda mais assustador que os desafios enfrentados pela protagonista deste filme.