Quem acompanha com um pouco mais de atenção notícias relacionadas ao mundo do cinema já deve ter notado uma tendência no meio: o fato de que as atrizes estão colocando a boca no trombone e exigindo mais igualdade não só para as trabalhadoras da área, mas para as mulheres em geral.

Para entender o fenômeno como algo para além de um modismo passageiro, é preciso interpretar alguns dados sobre o atual status da indústria cinematográfica. Mais que uma jogada para agradar determinada parcela do público e dar a entender que algumas estrelas são “engajadas”, as demandas cada vez mais frequentes, encabeçadas por atrizes como Meryl Streep, Salma Hayek e outras, são justas e o Cine Set explica o porquê.

Entendendo as raízes do problema

Quem vê estrelas como Cate Blanchett, Julia Roberts ou Jennifer Lawrence usando vestidos das maiores grifes do mundo e cobertas de joias (emprestadas) num tapete vermelho não imagina que a realidade da indústria cinematográfica pode ser cruel até mesmo com elas. No final de 2013, a Academia Cinematográfica de Nova York revelou que mulheres são metade do público pagante nos cinemas, mas são menos retratadas enquanto personagens, além de serem mais utilizadas apenas com finalidade sexual dentro das narrativas e terem menos falas.

Resumindo: há menos filmes com mulheres retratadas como personagens complexas, com motivações outras que satisfazer sexualmente um parceiro ou encontrar um, ao contrário dos personagens masculinos. É algo fácil de constatar a partir do chamado Teste de Bechdel, com o qual se pode analisar, ainda que de maneira superficial, a apresentação de personagens femininas no cinema a partir de três perguntas básicas: Há pelo menos três mulheres no filme? Elas falam umas com as outras? Se sim, é sobre algo além de homens? Ainda que um teste tão rudimentar não dê conta de avaliar em profundidade nenhum filme, é alarmante a quantidade de obras diversas que respondem a essas três perguntas com “não”.

Se nos filmes é assim, por trás das telas a realidade é ainda pior. Para cada mulher trabalhando na indústria cinematográfica, há cinco homens, e eles ganham ainda mais destaque em funções proeminentes como direção (91% dos diretores são homens) e roteiristas (85%). Entre as estrelas de cinema, a discrepância é equivalente: enquanto Robert Downey Jr. ganha uma média de US$ 75 milhões para interpretar o Homem de Ferro em todos os filmes que estrela, Angelina Jolie ganha US$ 33 milhões, sendo a mais bem paga entre as mulheres. Novos talentos como Jennifer Lawrence ganham “apenas” US$ 26 milhões. Já uma “oscarizada” Natalie Portman fica na faixa dos US$ 14 milhões, ganhando menos que Adam Sandler (US$ 37 milhões), que há anos estrela bomba atrás de bomba.

O que já era tabulado em pesquisas que não muita gente dava bola se tornou explícito aos olhos do mundo depois do vazamento de informações da Sony por parte de hackers, caso que ficou conhecido como Sonyleaks. Os dados confidenciais de trocas de mensagens pessoais por altos executivos e produtores da Sony revelou não só projetos, preferências e temores do alto escalão da empresa, mas também a quantia exata que algumas de suas estrelas ganhavam por filme. Foi graças ao vazamento dessas informações que a talentosa Charlize Theron, por exemplo, pôde ter o respaldo para bater o pé e aumentar seus ganhos para a sequência de “Branca de Neve e o caçador”, equiparando seu cachê ao de Chris Hemsworth, seu parceiro no filme.

Momento de resistência

Como dentro de qualquer setor trabalhador, as diferenças de remuneração e reconhecimento chegaram ao cinema e se tornaram gritantes. Isso se vê por várias frentes, a partir de ações espontâneas e outras mais articuladas. Como exemplo da primeira, podemos citar declarações como a da renomada diretora Agnés Varda, que ao receber um prêmio pelo conjunto da obra, citou a invisibilidade das diretoras mulheres no cinema.

Agnés Varda

Agnés Varda recebeu um prêmio pelo conjunto da obra e lamentou ser uma das poucas mulheres reconhecidas no cinema.

Já dentre aquelas que optaram por uma maior articulação para abordar o tema, destacam-se as atrizes Geena Davis e Emma Watson. A primeira criou um centro dedicado ao tema, o Instituto Geena Davis de Gênero na Mídia. Foi através dele que se divulgou outra pesquisa no final ano passado, a “Gender Bias Without borders”, que reforça os dados veiculados pela Academia Cinematográfica de Nova York.

Dentre eles, estão o fato de que só 30% dos personagens com falas são mulheres. A pesquisa também dá conta de que o Brasil é um dos países que mais traz representações sexualizadas de personagens femininos, e que as mulheres não são normalmente retratadas como trabalhadoras nos filmes, apesar de existirem 46,3% de mulheres trabalhando no mundo real.

Você pode conferir todos os detalhes da pesquisa “Gender Bias Without Borders” aqui (em inglês)

Indo além do cinema, a atriz Emma Watson, que passou muito tempo conhecida apenas como a Hermione da saga Harry Potter, atua hoje como Embaixadora da Boa Vontade da Agência ONU Mulheres. Ela encabeça a campanha “HeForShe”, destinada a divulgar a igualdade entre gêneros e que traz como mote o fato de que homens também são prejudicados pelo machismo. Ela foi considerada pela revista Time uma das 100 pessoas mais influentes do mundo em 2015, ficando da 26ª posição. Mais recentemente, a “He For She” promoveu, junto com a Variety, um encontro para tratar do tema, do qual participaram atrizes e produtoras de cinema. Aliás, foi lá que Salma Hayek afirmou que as mulheres só ganham mais que os homens no cinema pornô.

Mudanças graduais

Aos poucos, percebem-se mudanças culturais pequenas, mas significativas, que apoiam a bandeira de igualdade promovida pelas celebridades citadas, num movimento conjunto entre estrelas, mídia e público em gral. Dentre os casos mais recentes está a revolta dos fãs da franquia d’Os Vingadores com o fato de que a Marvel “esqueceu” que poderia fazer um filme solo da Viúva Negra, personagem extremamente popular hoje graças à interpretação de Scarlett Johansson. Até mesmo quando os atores Jeremy Renner e Chris Evans tiraram onda numa entrevista de divulgação da franquia e chamaram a personagem de Johansson de “vadia”, o público não aprovou e exigiu desculpas.

Antes disso, porém, outras mudanças de postura já eram observadas no tratamento do feminino no mundo do cinema. Chamou a atenção como várias atrizes, tal como Cate Blanchett e Kate Winslet, já estavam demonstrando claramente o descontentamento de serem entrevistadas sobre suas roupas, penteado, joias e relacionamentos amorosos nos tapetes vermelhos de premiações, enquanto seus colegas homens eram questionados sobre suas expectativas no evento ou projetos futuros no cinema. Algumas passaram, por exemplo, a se recusarem a mostrar sua manicure para quadros do canal televisivo E! Entertainment durante as temporadas de premiações.

Na última edição do Oscar, a atriz Patricia Arquette começou chamando a atenção por estar acima do peso no meio de jovens e magérrimas atrizes e com um cabelo completamente bagunçado. No entanto, quando subiu ao palco para receber sua estatueta de Melhor Atriz por Boyhood, seu discurso literalmente falou mais alto quando exigiu melhores salários e melhores papeis para as mulheres no cinema, tornando-se o centro das atenções por algo muito diverso de sua aparência.

Um pouco antes disso, aconteceu um vazamento de fotos íntimas de celebridades por parte de hackers, evento hoje conhecido na web como “The Fappening” (um trocadilho com “fap”, uma gíria para masturbação masculina). Revistas e sites de fofocas de todo o mundo tiveram livre acesso a imagens, algumas de conteúdo sexualmente explícito, de atrizes como Jennifer Lawrence, Aubrey Plaza, Vanessa Hudgens e Amber Heard; no entanto, seja por questões legais ou pela maneira questionável por como as fotos chegaram aos olhos do mundo, muitos foram os que se recusaram a publicá-las. Não apenas isso, muitos condenaram o fato de que hackers acessaram as imagens sem ter nenhuma permissão para isso.

Agora, a última polêmica rola em torno do Festival de Cannes, no qual supostamente várias mulheres foram barradas de sessões de gala por não estarem usando sapatos de salto alto. O burburinho se intensificou porque, nessa mesma edição do prêmio, houve um destaque para a apreciação e discussão sobre o papel da mulher na indústria cinematográfica, além do grande destaque ao filme “Carol”, estrelado por Cate Blanchett e Rooney Mara, cujo grande frisson está justamente na construção complexa das personagens mulheres.

Um caminho sem volta?

Com as inevitáveis transformações sociais que surgem a partir do discurso de igualdade entre os gêneros, vai-se tornando inevitável que mesmo indústrias engessadas como a de blockbusters se entreguem às mudanças. Se isso é uma tomada de consciência ou uma jogada estratégica para manutenção de um público que se afasta cada vez mais das salas de cinema, não importa; o fato é que hoje o público pode ter como parâmetro de comparação um filme-pipoca como “Mad Max: Estrada da Fúria”, cheio de carros legais, um protagonista emblemático, um vilão sinistro e (pasmem!) uma grande heroína com grande destaque na trama, tudo isso aliado a um visual detalhista e roteiro bem desenvolvido.

Charlize Theron como Imperatriz Furiosa em "Mad Max: estrada da fúria": uma representação positiva das mulheres no cinema.

Charlize Theron como Imperatriz Furiosa em “Mad Max: estrada da fúria”: uma representação positiva das mulheres no cinema.

Óbvio que um “Mad Max: Estrada da Fúria” é uma agulha no palheiro de filmes “mais do mesmo” com que o público se depara, seja em relação à discussão de gênero ou a outras estritamente cinematográficas. Porém, não deixa de ser revigorante que sua qualidade passa, também, pela escolha de retratar personagens femininas de maneira menos imbecil e preguiçosa. No atual contexto, ele não deixa de ser também sintomático, apontando para um caminho que parece cada vez mais não ter volta para o tratamento do feminino em Hollywood e, por conseguinte, no resto do cinema ao redor do mundo. Ainda bem.

» VEJA TAMBÉM: Na seção “O Segundo Sexo”, o Cine Set fala sobre filmes dirigidos por mulheres