Reservation Dogs e Assassinos da Lua das Flores são duas obras contemporâneas produzidas pela indústria cultural do audiovisual estadunidense. A primeira é uma série de três temporadas iniciada em 2021, disponível no Star+, e o segundo é um filme de Hollywood. A diferença não está apenas nesse formato (série e filme), mas principalmente no intento que se tem ao contar a história de pessoas indígenas norte-americanas.

A série, apesar de ter um grande nome da indústria na direção, Taika Waititi (“Jojo Rabbit”), tem por condutor Sterlin Harjo, um profissional do cinema que é uma pessoa indígena ligada a duas nações nativas. Já o filme hollywoodiano é um projeto capitaneado por brancos que inclui indígenas. Ou seja, é a história de um massacre, de um genocídio e não a história de um povo. O que não necessariamente é um equívoco. Mas é importante demarcar do que se trata.

Enquanto Reservation Dogs conta a história de uma comunidade indígena contemporânea, em toda sua riqueza e toda sua complexidade, sem romantizar e excluir problemas, Assassinos da Lua das Flores foca em um momento trágico de um povo. A escolha do diretor Martin Scorsese de contar esse evento dramático foi bem recebida pela crítica, afinal ele é um artista de prestígio dado pelas instituições consagradoras. Mas ao ter-se essa recepção tão predisposta ao seu olhar e sua narrativa, deixamos de pensar em aprofundamentos que supostamente defendemos.

BRANQUITUDE E SEUS CRIMES

A crítica de cinema Isabela Boscov ao comentar sobre Assassinos da Lua das Flores destaca que um dos maiores destaques e diferenciação do longa é porque “não é o olhar do forasteiro mitologizando. É um olhar para si mesmo”. O que simultaneamente proporciona uma situação ainda pouco vivida: um olhar do forasteiro para si, a partir de referenciais escolhidos pelos próprios representados. O que pode vir a ser um evento cultural inaugural, permitindo que a branquitude tenha novas referências sobre si mesma e principalmente sobre o Outro. Uma referência que não seja eurocentrada e, portanto, não diminua povos, culturas e experiências não-brancas.

Scorsese fez escolhas muito tímidas que apenas um branco dentro da indústria poderia fazer. A escolha de trocar o personagem principal entre o livro e sua adaptação não fez nem sequer arranhar o principal: tratar a branquitude e seus crimes. Já que não associa explicitamente as bases fundantes dos Estados Unidos da América e os crimes representados nas mais de três horas de filme, não demonstrou o império estadunidense criado em cima da exploração, massacre e ganância capitalista. Pois, crer que mostrar brancos matando indígenas possa ser revolucionário é acreditar que desenhos do Woody Woodpecker e Bugs Bunny eram de alguma forma críticos ao genocídio, uma vez que, constantemente indígenas eram alvo da violência ocidental e nem por isso eram críticos, pelo contrário. A representação da violência por si só não basta; é necessário a correlação com as causas e os verdadeiros intuitos por trás.

A questão é sobre que olhar teremos sobre esse massacre. A escolha de DiCaprio para esse papel dúbio, em que faz parecer em algum momento que ele desenvolveu sentimentos pela mulher que ele enganou, manipulou, torturou e matou, é um atenuante da crueldade da branquitude. “Assassinos da Lua das Flores” se equivoca ao supostamente sair do erro comum dos anos 90, de querer falar sobre indígenas, como no filme ‘Último dos Moicanos’ e ‘Dança com os Lobos’, mas sem entrar naquilo que diretores brancos poderiam e deveriam abordar: a branquitude.

O filme é sobre o massacre e não sobre a estrutura causadora desse, e tantos outros, não revela a força que conduz isso para além dos indivíduos: a branquitude. Ou seja, nem rompe definitivamente com os velhos hábitos e nem inaugura uma nova narrativa. Mas seguramente dará o prestígio de um “aliado”, como Scorsese fora chamado pela atriz Lily Gladstone no Festival de Cannes, para o já consagrado diretor e ator, vencedor do Oscar. E para melhorar a fachada hollywoodiana, pode dar o primeiro Oscar a uma atriz indígena. E não que ela não mereça, ao contrário; seu desempenho e seu talento são inegáveis. No entanto, quantas vezes Hollywood ignorou esses fatores em detrimento de seus interesses? Mas dessa vez, em mais um caso de redirecionamento de marca, a máquina de guerra que é a indústria cultural estadunidense, irá aproveitar o indiscutível talento de Lily Gladstone e premiá-la de tal forma que a maior beneficiada seja ela mesma, a indústria.

ABUSO NÃO É AMOR

Por isso cabe destacar a crítica da atriz Devery Jacobs, de  Reservation Dogs ao filme do Scorsese, mesmo nele tendo uma atriz indígena também da série. É possível ver em qual trabalho, em qual narrativa indígenas são sujeitos e em qual são fetiches, inclusive para uma suposta expiação da famosa culpa judaico-cristã, que perpassa a branquitude, professando ou não tal fé. Lembrando que branquitude é sobre ações sistêmicas e forças estruturais, não diz sobre indivíduos.

Como o filósofo nigeriano, Bayo Akomolafe, explica ao afirmar que “a branquitude não são pessoas brancas. Porque as pessoas brancas também foram capturadas pela branquitude. A branquitude é um arranjo social”. Compreender isso é fundamental para ampliar a perspectiva e não cair num reducionismo para o indivíduo. Ainda nas palavras do filósofo “a branquitude é sobre o que nossos corpos estão fazendo, como estamos nos relacionando com a terra” e o resultado é como o próprio subalternizado acaba se vendo.

Mas o central a se destacar aqui é o perigo de como a branquitude representa situações extremas, como o genocídio do povo Osage. Na fala de Scorsese e DiCaprio, ambos se referem à narrativa como uma história de amor (assista no fim do texto aa coletiva concedida na França). O ator se refere ao filme como uma “história de amor bizarra e muito distorcida” e Scorsese como “tragédia de amor, confiança e traição aos povos indígenas”.

Não existe absolutamente nenhuma razão para que essa violação de direitos humanos em larga escala seja chamada de amor, ainda que de maneira distorcida. Tentar manifestar uma dubiedade no comportamento do personagem principal, executor de assassinatos, ainda que por encomenda, é deslocar sobre o que se trata: relações de poder. Nunca em nenhum momento existe o afeto como condutor dessas relações.

Afirmar isso não quer dizer que a figura real de Ernest não possa eventualmente ter se simpatizado pela Osage Mollie. Mas abuso não é amor. Esse se dá apenas na liberdade e igualdade dos envolvidos. Há um equívoco estruturante na noção romantizada do amor, disseminada inclusive por Hollywood: nela, perde-se a importância das relações de poder e o espaço que cada indivíduo ocupa nessa estrutura. E indivíduos em desigualdades são impossibilitados de criar vínculos afetivos desligados de outras questões. E por isso a honestidade, sinceridade e igualdade ficam fora dessas relações. É imprescindível dissociar violência e abuso da noção de amor. Afinal:

A aceitação generalizada da mentira é uma das principais razões pelas quais muitos de nós nunca conheceremos o amor. É impossível alimentar o próprio crescimento espiritual ou o de outra pessoa quando o centro da identidade está envolto em segredos e mentiras. Confiar que outra pessoa sempre queira o seu bem, ter uma base sólida de prática amorosa, não pode acontecer num contexto de ilusão. É esse truísmo que torna todos os atos de retenção sensata de informações dilemas morais de primeira ordem. Mais do que nunca, enquanto sociedade, precisamos renovar o compromisso de dizer a verdade. Esse compromisso se torna difícil quando mentir é considerado mais aceitável que dizer a verdade. Mentir se tornou mesmo tão aceitável como normal que as pessoas mentem quando seria mais simples dizer a verdade

bell hooks

Livro 'Tudo sobre o amor' - Pág 88

Impossível que um filme – que chame de amor uma ação deliberada da estrutura racista – possa dar o status de aliado a um perfeito exemplar dos que se privilegiam com o saque feito aos povos originários. Um filme que nem sequer faz menção de dizer sobre a fortuna Osage sendo base para diversas famílias brancas ainda hoje seguirem usufruindo de privilégios que povos originários nem passam perto. É plausível acreditar que Scorsese não enxergue certas nuances devido a branquitude introjetada, ao invés de dizer que faça deliberadamente para tirar proveito. É possível acreditar que ele genuinamente se pense um aliado. Mas como ele mesmo afirma em sua fala em Cannes, ele não correu riscos. E como resultado disso, ele deixou de falar do principal que, aí sim, poderia fazer alguma diferença a sua reputação e prestígio: apontar branquitude e sua estrutura sistêmica que impede a vida ao seu redor de tudo que não for branco.

PEQUENAS REFORMAS na MANUTENÇÃO DO STATUS QUO

Nesse momento, o apontamento de Fanon sobre violência precisa ser resgatado: “o colonizado que decide realizar esse programa, que decide fazer-se o seu motor, está preparado desde sempre para a violência. Desde o seu nascimento, está claro para ele que esse mundo encolhido, semeado de interdições, só pode ser questionado pela violência absoluta” (Fanon apud Alves, 2020, p.3).

O autor do livro “A educação para além do capital”, István Mészáros, defende a necessidade de uma ruptura completa, absoluta e radical com a lógica do capital, “pois o capital é irreformável porque pela sua própria natureza, como totalidade reguladora sistemática, é totalmente incorrigível” (Mészáros, 2004).

Como então produzir uma nova visão historiográfica que quer seguir mudanças conforme a lógica do capital permite. Ele diz até onde pode ou não haver ruptura. São pequenas reformas que permitem seguir no status quo. Seguimos endeusando figuras estabelecidas pelas instituições consagradoras. Os prêmios desse filme farão parecer que estamos num novo momento para os povos indígenas, mas seguimos ainda o protocolo estabelecido por aqueles que fazem as regras.

TRECHO DA COLETIVA:

JASON GARBER – “Olá, aqui é Jason Garber do thatshelf.com no Canadá.

Eu seria negligente se não reconhecesse que o trágico assassinato de mulheres indígenas continua até hoje na América do Norte, portanto, pensamentos para aquelas que ainda estão desaparecidas e foram assassinadas em meu país, no sul do país.

Sr. Scorsese, Sr. Dicaprio, esse filme começou originalmente como um drama policial mais direto, como o material de origem, e vocês decidiram seguir uma direção muito diferente, o que foi muito caro, muito demorado, mas resultou na possibilidade de contar a história de Lilly e Leo, de contar a dinâmica desse relacionamento em vez de se concentrar nisso.

Sr. Scorsese, não teríamos nos importado se o senhor tivesse feito um filme direto, mas decidiu dar essa reviravolta. O senhor poderia falar sobre essa fase da sua carreira em que ainda se arrisca e se os dois atores e o Sr. De Niro podem falar sobre como dar vida a essas regras de maneira tão sutil, complexa e cheia de nuances?

MARTIN SCORSESE – Obrigado, sim… Nós falamos disso depois de eu, Eric Roth e todos nós juntos tentarmos expressar a história do ponto de vista do departamento de investigação que chegava, e eu disse: “Bem, acho que o público está à nossa frente. Eles sabem que não se trata de um caso de quem, mas de quem não o fez”.

E a certa altura (isso depois de dois anos trabalhando no roteiro), Leo veio até mim e iria interpretar Tom White, não é? Tom, eu acho… acho que Jesse toca…

E ele me disse “onde está o cerne desta história?” e eu tive algumas reuniões com os Osage (alguns jantares no Gray Horse), e questionei Pahaska, e eles se levantaram e falaram, e aprendi muito sobre eles naquelas três horas. Eu aprendi sobre as próprias pessoas, e as histórias, e tudo relacionado entre si e ainda há relações e ainda há problemas e fulano de tal estava apaixonado – não, ele não estava – sim, ela estava… e continua assim . E eu disse “bom, aí está a história”. A história está no personagem sobre o qual menos se escreve, sério, e claro que era isso que Leo queria fazer. Ele disse: “Vamos tentar descobrir quem é Earnest, ou vamos criar Earnest como um exemplo ou como (uso minhas palavras com cuidado, mas) como um modelo para aquela tragédia de amor, confiança e traição aos povos indígenas, quando o branco simplesmente aconteceu, sabe? E eu disse: “Nós poderíamos realmente entrar lá e torcer e virar a história e, então, eu sei que quando conhecemos Lilly, sabíamos que tínhamos conseguido. Portanto, esse era o caminho a seguir. Com relação a correr riscos nessa idade, o que mais posso fazer? Eu não sei. “Vamos fazer algo confortável”, está brincando? Confortável como sentar-se confortavelmente em um cenário no calor. Você também pode estar se arriscando, sabe? Não quero ser arrogante, mas você está certo, é uma grande aposta, mas não sei se nos arriscamos.

LEONARDO DICAPRIO –  Sabe, nós… Eu me lembro de termos conversado muito cedo sobre o que Marty faz tão incrivelmente bem: ele é capaz de expor a humanidade até mesmo de alguns dos personagens sinistros mais perversos que você poderia imaginar. Ele traz à tona a condição humana em seu trabalho. Vimos alguns filmes de Montgomery Clift logo no início (Scorsese – sim, a herdeira). Sim, a herdeira, Placed In The Sun, Red River, e acho que a aposta era assumir essa história incrivelmente importante que estava realmente fazendo contas com nosso passado. Quero dizer, muito se aprendeu nos últimos anos e essa história, assim como o Massacre de Tulsa, foi algo que as pessoas começaram a conhecer e a entender que fazia parte da nossa cultura e da nossa história, e foi um verdadeiro retorno aos grandes filmes épicos da década de 1940, que têm como centro essa história de amor bizarra e muito distorcida, na qual trabalhamos muito. Marty estava lá todos os dias, conversávamos com a comunidade para ouvir as histórias reais e tentar incorporar a verdade da melhor forma possível e, independentemente do que as pessoas achem do filme, sei que todos nós fizemos esse trabalho e demos o nosso melhor para respeitar as histórias reais e incorporá-las à narrativa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Joyce Amâncio. Violência e ação política: Frantz Fanon, Hannah Arendt e reverberações na contemporaneidade. In: “44º Encontro Anual da ANPOCS”, GT23 – Memória Social e Sociedade: os desafios contemporâneos, 2020.

 MÉZÁROS, István. A educação para além do capital. Boitempo editorial, 2015.