Até por volta das 17h30, o domingo do dia 16 de julho de 2017 estava radiante como qualquer outro que se preze. Por isso, acabou sendo um grande baque quando recebi a notícia da morte de George A. Romero, através do colega do Cine Set, Ivanildo Pereira. Romero era uma das mentes mais criativas do cinema de horror, um cara que passou por esse mundo e fez uma grande revolução, não apenas para mim como para o cinema em geral.

Seus filmes de terror nunca foram vazios, sempre tinha conteúdos, de enfiar o dedo na ferida da raça humana. Foi capaz de tudo pela arte. Lembro que na minha adolescência meu amor pelos filmes de horror começou assistindo a série Sexta-Feira-13 e outros filmes do finado Cine Trash da Rede Bandeirantes. Eram filmes que provocavam medo, sustos baratos e o sentimento bizarro de ver o sangue jorrando na tela como um prazer culposo.

As coisas mudaram quando vi o terceiro filme – o meu primeiro do diretor – da saga de mortos-vivos de Romero: Dia dos Mortos (1985) em uma fita VHS de um primo. O terror deixava de ser um mero entretenimento, para se tornar algo mais concreto, bruto e assustador. Romero transformou o terror sobrenatural até então vigente na época, em algo real e incomodo. É como se vampiros, bruxas, bicho papão e demais outros seres sobrenaturais saíssem da esfera fantasiosa de nossas mentes e se materializassem em carne e osso. Eles não moravam mais em armários ou debaixo de nossas camas, mas sim parte do nosso dia a dia, residiam em nossas casas, nas vizinhanças e se alimentavam de nossas emoções mais destrutivas, como o ódio, a intolerância e o medo. Foi graças a Romero, que o gênero de terror sempre alvo de preconceito no cinema, começou a exercer reconhecimento pela crítica.

Dia dos Mortos foi o primeiro filme de terror que me deixou deprimido, pelo teor niilista em relação a humanidade. Ele sintetizou que no subgênero de mortos-vivos, o terror poderia ir além do mero susto banal e ser dotado de massa crítica inteligente de questionamentos. Seus filmes apresentaram comentários sociais relevantes dos vícios, mazelas e egoísmos do ser humano, além de dar novo upgrade ao gênero.  Seus mortos, funcionavam como alegorias político-sociais dentro da instabilidade mundial. Elementos como o preconceito racial, a intolerância social e os problemas de ordem interpessoal foram utilizados como metáforas dentro dos seus filmes. O mundo estava uma bagunça e lá estava Romero realizando seu cinema de guerrilha social, independente e repleto de criatividade.

E se Hollywood adora imbuir rótulos de realizadores visionários, o que dizer de um cara como Romero? Um grande mestre visionário, que colocou um negro como protagonista no seu primeiro filme em uma época marcada pela intolerância racial (aquele final impactante de A Noite dos Mortos-Vivos até hoje me gera calafrios) e permitiu um vasto caminho a ser percorrido por outras produções e realizadores como é o caso do recente Corra! que bebe muito na fonte da cartilha romeriana. O olhar inovador do cineasta em relação a sociedade consumista em Despertar dos Mortos (1978) é lembrado até hoje quando assistimos pessoas acampadas nos Black Fridays da vida.

Fora da realidade “…of the Dead”, Romero discutiu os vampiros sobre o prisma um conto melancólico sobre o vampirismo emocional frente à intolerância religiosa em Martin (1977); fez uma crítica velada ao militarismo em Exército do Extermínio (1977) e usou a bruxaria como metáfora para liberação feminina e emancipação da mulher. Influenciou gente do naipe de John Carpenter, Sam Raimi e Lucio Fulci em seus filmes. A força do seu cinema não se restringe apenas a sétima arte: Nas HQs e no seriado The Walking Dead, nos games de Resident Evil e quem assistiu ontem a nova temporada de Game Of Thrones com certeza notou semelhanças entre os mortos-vivos gelados com os de Romero. A influência do pai dos zumbis é incontestável.

Como alguém que estimulou meu amor pelo cinema de terror, eu o imaginava como uma espécie de highlander, um ser um imortal que jamais partiria dessa vida. É o mesmo sentimento de como enxergamos nossos pais: que eles viverão para sempre e jamais nos abandonarão. Infelizmente, They´re Coming to get you, George. Até a morte tinha simpatia pelo mestre, preferindo levá-lo enquanto dormia tranquilamente e ouvia a sua trilha sonora favorita acompanhado de mulher e filha. Ontem, Romero partiu dessa para melhor, aos 77 anos de idade, transformando seus fãs em eternos mortos-vivos de saudade. Se ele não era imortal, sua arte e seus filmes são. Obrigado por tudo, George.

por Danilo Areosa


Quando eu era mais novo e comecei a devorar os filmes de mortos-vivos de George A. Romero junto com meu irmão, uma vez brinquei com ele que o cineasta norte-americano não iria morrer, ia virar um zumbi quando passasse desta para melhor. O quão bacana seria? O cara que praticamente inventou o filme de zumbis como conhecemos hoje bem que poderia virar um deles e dar início ao apocalipse que ele colocou nas telas, com pouco dinheiro e muita inteligência, uma equação quase nunca seguida pelo cinema.

Hoje, quando recebemos a notícia do falecimento de Romero, além de triste, o pesar é também pela constatação de que ele não conseguiu, de alguma forma, vencer a morte. Por trabalhar tanto dentro desse tema, às vezes me parecia que aquele velhinho de óculos fundo de garrafa conhecia um segredo sinistro e iria ficar por aí para sempre. Mas não foi o caso.

Fica o legado, que no caso de Romero é enorme. Não apenas como criador do subgênero zumbi e diretor dos três melhores filmes já feitos com essas criaturas em todos os tempos – A Noite dos Mortos Vivos (1968), O Despertar dos Mortos (1978) e Dia dos Mortos (1985) – mas também como cineasta INDEPENDENTE, assim mesmo, com maiúsculas. Não são todos os cineastas que dividem a arte, ou um gênero, em antes e depois dele, mas acima de tudo Romero também merece ser lembrado como um dos maiores independentes que já existiu, um cara que basicamente se virava com orçamentos pequenos ou às vezes até não filmava, se não conseguisse ter controle sobre a sua visão. E além de cineasta, Romero foi também um poderoso comentarista social, alguém que sempre usou suas obras para falar sobre temas importantes para ele, seja a sua visão sobre os Estados Unidos através dos seus filmes de zumbis, ou suas ideias sobre a arte e cinema – Sua visão de cinema e de como fazer um filme está sintetizada no pouco lembrado, mas excepcional Cavaleiros de Aço (1981), um dos seus melhores trabalhos. Às vezes seus comentários vinham até por suas opiniões fortes em entrevistas: Quem não se lembra dele descascando The Walking Dead?

Stephen King, amigo e colaborador de George Romero, escreveu no Twitter que “nunca vai haver outro igual”. Quem sou eu para discordar do Rei? Romero não escapou do destino que, nos seus filmes, parecia uma zona cinzenta da qual se podia voltar, porém sob o custo de uma transformação. Mas sua arte; seu exemplo de produzir acima de tudo, superando os obstáculos; e suas imagens permanecerão vivas – ou “mortas-vivas”? – nas mentes e retinas dos seus incontáveis fãs. Essas coisas, sim, não podem ser mortas. Nem com balas na cabeça.

por Ivanildo Pereira