Alguns temas são tão necessários para serem discutidos na sociedade que é quase uma questão moral que eles sejam trabalhados num meio como o cinema. Tido como a primeira arte a já nascer massiva, ele potencializa significativas discussões sociais graças a sua capacidade de atrair o público ao mesmo tempo em que aprofunda um assunto. É exatamente isso que acontece com o documentário “India’s daughter”, que chegou ao público brasileiro graças à aquisição da obra por parte do serviço de video on demand Netflix e, especificamente em Manaus, graças a exibições promovidas por grupos independentes.

Coincidentemente, o tema do documentário é o mesmo da recente redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2015: a violência contra a mulher. O pontapé da narrativa é o estupro brutal da universitária Jyoti Singh em 2012, que aconteceu em Nova Déli, Índia. A jovem voltava do cinema com um amigo por volta de 20h e foi estuprada por um grupo de homens no interior de um coletivo. As agressões foram tão brutais que um deles enfiou o braço em sua vagina e arrancou parte de seu intestino. Jyoti veio a falecer algum tempo depois, mas deixou como legado a inspiração para uma série de enormes protestos de universitários e outros grupos sociais contra o machismo intenso que assola a cultura indiana até hoje.

Dar conta de expor, logo de cara, o quão violento foi o crime cometido contra Jyoti não é apenas a estratégia deste texto; foi também a escolha da diretora do documentário, Leslee Udwin. Ela reconta os detalhes do estupro sem reconstituições visuais do fato, apoiando-se, quando muito, na imagem que se repete várias vezes: a de um ônibus vagando na escuridão da noite e na imensidão da estrada. O que realmente surge de agressivo é o contraponto a essa escolha de preservar os olhos do espectador e não poupar seus ouvidos ao entrevistar um dos estupradores de Jyoti, Mukesh Singh.

Singh acredita piamente que não pode receber uma condenação tão grave como a morte por enforcamento que o aguarda. Para ele, uma mulher não deveria estar andando sozinha de noite, principalmente por estar sem a companhia dos pais ou irmãos. Mais brutal que isso é o fato de que esse pensamento é aceito abertamente na Índia, o que, como explica o documentário, faz com que muitos se sintam no direito de cometer o crime de estupro, pois as mulheres “pedem” por isso ao escolherem sair de casa. Mukesh não pestaneja ou demonstra nenhum remorso quando a diretora lê a ele a extensa lista de agressões que ele e seus comparsas infligiram a Jyoti. Esse é um dos momentos mais incômodos do filme.

Completa o quadro as falas dos advogados que defendem as atitudes dos agressores. Eles firmam suas falas basicamente em preceitos de uma tradição que não mais deveria se justificar num país que desponta como economia capitalista emergente, no qual cada vez mais mulheres ingressam na faculdade e se tornam profissionais das mais diversas áreas. Personagens como o advogado M.L.Sharma geram ainda mais asco ao fazerem a comparação entre a mulher e uma flor, que deve ser “protegida”, pois se estiver na rua, alguém a “arrancará”, pois ela é tão delicada… São argumentos que em momento algum e em cultura nenhuma se fundamentam porque simplesmente não fazem sentido, mas que são seguidos a risca por um amplo grupo social.

Para além do asco

Em termos de trabalho com a linguagem fílmica, Leslee Udwin dá um passo a frente quando decide ir além do tradicional formato televisivo em termos de abordagem do tema no roteiro e edição. Dessa maneira, ela enriquece “India’s daughter” ao mostrar o background de Jyoti e o de seus agressores. Enquanto a moça era de uma família humilde, mas com um mínimo de condições de arcar com seus estudos até ela finalizar a faculdade de medicina, os jovens Ram Singh, Mukesh Singh, Vinay Sharma,  Pawan Gupta, Akshay Thakur e o então menor de idade Uttar Pradesh viviam em favelas de Nova Déli, enclausurados numa condição socioeconômica paupérrima em todos os sentidos, dentre eles, o educacional.

A diretora então mostra como a desigualdade social que faz com que jovens não tenham condição de estudo e trabalho alimenta a perversa mentalidade da cultura de estupro na Índia, de maneira que Nova Déli passou a ser conhecida como “a capital do estupro”. Somam-se a isso questões religiosas influenciando o sentimento de posse do corpo da mulher pelo homem e o quadro bizarro começa a fazer mais sentido. Aos poucos, o conhecimento do espectador sobre o contexto do caso de Jyoti começa a parecer mais sistematizado para seu entendimento, sendo auxiliado também pela presença de entrevistas de psiquiatras, ativistas e outros defensores do fim da cultura de estupro no país.

Assim, quando até mesmo algumas figuras políticas tentam minimizar ou invisibilizar o significado do crime e dos posteriores protestos nacionais contra a onda de estupros, é possível a quem vê o filme entender que a dita inferioridade feminina é tida como óbvia dentro daquele sistema. Além disso, o público passa a ver que só a opinião pública poderia influenciar de forma mais contundente a decisão sobre o que aconteceria com os criminosos confessos que deram fim à vida da jovem, de maneira que os repetidos protestos tiveram grande influência nas mudanças políticas subjacentes.

As outras vítimas do crime

Leslee Udwin também é inteligente de apostar nas vítimas indiretas do estupro de Jyoti como uma estratégia de trazer não só um quadro mais completo de seu tema, mas também de agregar originalidade ao filme. Dessa forma, dedica bastante tempo às falas dos pais da jovem, que contam como sempre a apoiaram e a amavam mesmo não sendo “um filho homem”, chegando mesmo a vender bens que possuíam para apoiar os estudos da moça.

Não só os pais de Jyoti, mas também os pais e esposa de um dos estupradores são entrevistados. São idosos morando em meio ao lixo de favelas que fazem qualquer área periférica brasileira parecer um cenário de novela das oito. É a esposa que diz que em breve enfrentaria um destino mais sofrido ainda por não ter o marido para defendê-la, e que preferia matar de vez a ela mesma e ao filho, um bebê de poucos meses. São pessoas que tem a certeza de não contarem com nenhum tipo de suporte emocional, social, político. Novamente, a absurda desigualdade de uma Índia moderna-arcaica surge no longa, perpassando o tema principal de tempos em tempos.

India’s daughter” não traz grandes experimentos visuais, e quem passa a vista rapidamente pelo filme pode muito bem confundi-lo com uma grande reportagem televisiva de programa dominical até se dar conta de sua duração mais longa e estratégias narrativas sutis. Porém, o que ele agrega enquanto norteador de diversas discussões faz com que seja uma obra marcante e com potencial para a vindoura temporada de premiações, necessária a esses tempos de opiniões cada vez mais radicais, acompanhadas de cada vez menos reflexão. Como todo bom filme, envolve o espectador e o coloca para pensar.