Caso você não tenha percebido ainda, o nome Agnès Varda está na moda. No Oscar 2018, seu documentário Visages, Villages (2017) era um dos favoritos na competição – perdeu, injustamente, para o regular Ícaro (Icarus, Brian Fogel e Dan Cogan, 2017). Na última edição da Cahiers du Cinéma, foi a vez do rosto de Varda estampar a capa da revista e sua obra ganhar merecido destaque. Cada vez mais, a diretora francesa de 90 anos deixa de ser um apêndice na (masculina) história do cinema e assume o posto de uma das mais importantes realizadoras na Nouvelle Vague. Para os neófitos, entender o quanto esse reconhecimento é válido perpassa ver filmes como Uma canta, a outra não (L’une chante, l’autre pas, 1977).

Não entenda mal: introduzir o nome de Varda é falar, primeiramente, de filmes como Cléo das 5 às 7 (Cléo de 5 a 6, 1962) ou As duas faces da felicidade (Le bonheur, 1965). Mas é Uma canta, a outra não que melhor se sintetizam muitos pontos centrais à abordagem de Varda sobre a mulher enquanto personagem digno de profundidade e atitude ativa. As linhas gerais de sinopse pontuam temas tão atuais que o filme poderia muito bem ser lançado hoje e poucos ajustes seriam necessários para que ele se mostrasse fresco.

Nela, Pauline (Valérie Mairesse) é uma estudante que descobre, por acaso, sua velha amiga Suzanne (Thérèse Liotard) como modelo numa fotografia exposta em uma galeria. As duas se reaproximam e vemos Suzanne, com dois filhos pequenos, passar por dificuldades financeiras e às voltas com uma gravidez não planejada. Pauline decide ajudar a amiga com dinheiro para realizar um aborto, um plano que é descoberto pelos pais da menina.

A partir daí, as duas definem seus destinos: Pauline é expulsa de casa e passa a viver como cantora, assumindo de vez o apelido de Pomme; e Suzanne enfrenta o luto após o suicídio do companheiro e os desafios de ser uma mãe solteira. Ao longo de 10 anos, as duas trocam correspondências e encontros fortuitos, com a solidariedade entre as mulheres sendo o fio condutor da história.

Feminismo(s)

Em Uma canta, a outra não, observamos que a construção de personagens no roteiro idealizado pela própria diretora perpassa uma noção de feminismo plural. Pomme, mais jovem, tem desejos e ímpetos mais radicais, levando um estilo de vida sempre desafiador, até mesmo por sua verve artística. Já Suzanne é mais introspectiva e cuidadosa, afeita à maternidade e menos combativa quanto aos papeis sociais pré-estabelecidos às mulheres da época. No entanto, cada uma luta a sua maneira quando as imposições do patriarcado vão contra a felicidade delas.

Suzanne, por exemplo, parte de uma fragilidade (financeira, emocional) para a segurança de si mesma em áreas diversas, sendo esse o seu arco de superação; já Pomme aprende aos poucos a encontrar o equilíbrio entre sua rebeldia e a necessidade de expressar carinho e mesmo delicadeza. Essa abordagem humanista, na qual mulheres não são 8 ou 80, é hoje posta como progressiva e necessária (embora a complexidade e verossimilhança sejam regra quando falamos de histórias sobre homens), e o longa de Varda se coloca como uma referência salutar de como fazer isso. Isso e os desafios enfrentados por Pomme e Suzanne mantêm o filme mais atual que nunca.

Em Uma canta, a outra não, feminismo é sinônimo de autodescoberta, e as bandeiras levantadas – como o aborto seguro, ao controle pela escolha da mulher de quando e se terão filhos, a divisão de tarefas com o parceiro ou os ganhos na vida profissional – nos fazem refletir ainda sobre um outro detalhe: o quanto as mulheres ainda precisam lutar por seus direitos. Posto que as demandas feministas de 1977 são basicamente as mesmas de 2018, o senso de atualidade do longa tem sabor agridoce.

Dentre os tópicos listados, a maternidade é sem dúvida central. O aborto, embora penoso, não é exposto como estigma; o dilema da escolha não é o ponto central aqui, e sim o direito a ela. Isso fica claro no momento em que o arco de Pomme se desenha na Holanda, para onde ela vai em busca de um aborto seguro, e lá conhece o homem que virá a ser seu companheiro e pai de um futuro filho. Suas canções, muitas de protesto, ganham uma enorme doçura na abordagem do casamento e da maternidade, mas nem por isso passam a menosprezar o quão valoroso é decidir ter um filho, e não simplesmente tê-lo porque aconteceu.

Espectadora com A

Varda também acerta em cheio ao explicitar a diferença de idade entre Pomme e Suzanne, que, por sua vez, serve de baliza à autoidentificação do público feminino com as personagens. Em Uma canta, a outra não, a experiência espectatorial pende ora para a mais nova, nos momentos em que explicita seus questionamentos sobre os papéis de gênero; ora para a mais velha, que quase sempre opta por soluções discretas para os “empecilhos” de ser mulher numa sociedade machista.

Dessa maneira, seja quando Pomme decide deixar o marido, o iraniano Darius (Ali Rafie), ou seja quando Suzanne engole em seco as ofensas dos pais por ser viúva de um homem que ainda era casado no papel com outra mulher, as espectadoras (com A) conseguem se identificar com os papeis dominantes e submissos que as personagens assumem em dado momento. Eles refletem nossas próprias experiências no que tange aos percalços que passamos exclusivamente por sermos mulheres.

No fim das contas, Pomme e Suzanne são revolucionárias, ainda que certas revoluções aconteçam no campo do cotidiano, e Varda sabe bem como tornar esses momentos lindos de se ver em filme também esteticamente. O background da diretora vem dos estudos em história da arte, do teatro e da fotografia, e a interseção com esses três elementos são centrais quando pensamos nos aspectos audiovisuais para além do roteiro.

Crítica e autocrítica

As cores no universo de Pomme são vibrantes, numa paleta variada que sempre privilegia seus cachos rebeldes e olhar inquieto. Já as músicas de sua banda hippie guiam a evolução da personagem e parecem saídas de um musical teatral.

A performance sobre a divisão de tarefas domésticas, por exemplo, brinca duplamente com o tom de crítica: por um lado, Pomme expõe a dupla jornada das mulheres na apresentação; por outro, o fato dela, uma mulher vinda da capital, apresentar-se a um público de camponeses muito mais velhos, num contexto em que homens e mulheres desempenham tarefas mais árduas no campo, parece contraditório e burguês. O mesmo se dá nas observações de Pomme sobre a vida no Irã. Como é comum no cinema de Varda, a crítica tem a companhia da autocrítica.

Já quando passamos para Suzanne, os planos se tornam de certa maneira mais limpos. As cores e a mise en scène como um todo parece mais minimalista, especialmente no primeiro terço, quando ela ainda se encontra com o companheiro, Jerôme (Robert Dadiès).

O figurino acompanha a tendência, tendo cortes mais simples que só se tornam mais modernos na medida em que a personagem se mostra mais segura de si. A fotografia em preto e branco, com seu tom solene e melancólico, também é um elemento de cena diretamente associado a ela.

Na experiência de se aprofundar no cinema de Agnès Varda, Uma canta, a outra não é talvez um dos pontos altos no quesito diversão. Seria de se esperar que as temáticas suscitadas pelo longa levassem a uma fruição até mesmo penosa para espectadores não cinéfilos, mas ela sabe como poucos delinear diferentes camadas textuais em sua obra de maneira que qualquer pessoa assiste a esse filme sem grandes dificuldades, permitindo-se uma leitura crítica adequada a quaisquer conhecimentos prévios, o que não deixa de ser parte da genialidade da diretora. Nada mal para quem já foi apenas uma nota de rodapé na história da Nouvelle Vague, ou aquela “senhorinha fofinha” que também dirige uns documentários, e hoje se coloca como uma das vozes mais contundentes do cinema mundial.