Os cinco minutos iniciais de Jackie evidenciam a sua essência principal: através de planos abertos e fechados, o interesse da câmera do promissor cineasta chileno Pablo Larraín é discutir a imagem de forma quase obsessiva no formato documental, no caso, da ex-primeira-dama Jacqueline Kennedy. Neste aspecto, o longa-metragem é um estudo intrigante e sólido de personagem, que desconstrói a imagem de ícone feminino criada pela mídia, para inseri-la na dimensão pessoal, adquirindo em vários momentos da narrativa, um retrato controverso que tem na performance de Natalie Portman, o pilar dramático necessário e diferencial para elevar a intensidade do filme.

A narrativa principal de Jackie se concentra nos dias entre o assassinato de Kennedy e seu enterro, porém, Larrain emprega outros arcos narrativos para desenvolver sua trama principal: a entrevista concedida pela viúva a um jornalista (Billy Crudup) da revista Life, dias depois do velório; outra entrevista – esta ocorrida antes da morte do marido – onde apresenta o interior da Casa Branca para a mídia e por fim, as confissões que faz a um padre vivido por John Hurt (um dos seus últimos trabalhos) momentos antes do enterro oficial do marido.

Com vários enfoques narrativos, mas que giram em torno do mesmo eixo principal, perceber-se facilmente que o longa foge das cinebiografias convencionais, que abraçam o mundo, contando toda a história de vida dos seus biografados – ano passado, o nacional Elis cometia este pecado – porém, sem resultados significativos. Neste sentido, Larraín toma decisões interessantes pelos recortes e registros pessoais que realiza, e do que gostaria de apresentar ao público. Destrinchar a figura de Miss Kennedy do ponto de vista emocional funciona graças à boa costura que realiza, entre as várias narrativas de forma pontual, elencando situações, questionamentos e reflexões que ajudam a construir o enigma do quebra-cabeça de quem realmente foi a primeira-dama.

Se aproveitando dos flashbacks (e bote flashbacks) para fazer a panorâmica de uma das passagens mais importantes da história americana, o diretor evita a cronologia histórica dos fatos que culminaram no assassinato de Kennedy para enveredar pela lógica emocional de Jaqueline Kennedy. Aqui, o importante não é desvendar os aspectos políticos que resultaram na morte do presidente ou a conspiração que até hoje povoa o imaginário das pessoas, mais entender o lado humano, de uma mulher considerada como modelo feminino na época, que teve lidar com uma tragédia pessoal ao mesmo tempo em que precisou se reorganizar emocionalmente em espaço curto de tempo (quatro dias) para lidar com o luto, o choque e as inseguranças pessoais tanto como mãe quanto viúva.

Para quem conhece a obra de Larraín, sabe que este é um terreno que o diretor adora. Seus longas são sempre impregnados de olhares voltados para personalidades, polêmicas e situações da história-política– No e Neruda tratavam da ditadura de Pinochet, enquanto O Clube mexia na ferida da igreja católica da pedofilia –para trabalhar seu cinema econômico e obsessivo pelas imagens. Em Jackie, ele encontra o espaço ideal para observar e compreender a relação entre a imagem pessoal, pública e política da personagem, que de certo modo, ajudou a moldar o mito de John Kennedy na história americana.

O filme neste ponto se apropria bem dos elementos técnicos para ajudar o público a ter uma visão bem real da primeira dama. O uso dos travellings em várias cenas, sempre circulando o rosto da personagem juntamente com os close-ups centrados no rosto de Portman, pontua para o público, o quanto as emoções e feições evocadas por aquela mulher são dicas primordiais para desvendá-la. Vê como aos poucos Larraín desconstrói a imagem entre o público e o pessoal se torna contundente através das suas rimas visuais que seguem a linha da contradição.

A entrevista que aparece no primeiro ato do filme, em que Jacqueline abre as portas da Casa Branca, para mostrar ao mundo a intimidade da vida presidencial e a importância que ela desempenhou em moldar a imagem do lugar – o toque pessoal a um lugar conservador – ganha uma dimensão fantasmagórica mais a frente na narrativa, quando observamos o lugar engolindo por completo Jackie, após o seu retorno de Texas, com a câmera de Larraín abandonando os planos fechados no rosto da personagem para utilizar abertos, deixando-a pequena na imagem, quase um espectro perambulando atordoado pelo recinto, sinalizando a dor e choque da personagem frente à tragédia. Esse mesmo tipo de rima visual é pontuado em outro momento – sem dúvida a melhor cena do filme – quando a personagem passeia pelos aposentos vazios da Casa Branca enquanto experimenta roupas e objetos, o que permite sentirmos a dimensão da solidão e isolamento da personagem dentro da mise-en-scène.

Vale ressaltar aqui como estas cenas são habilidosas, não apenas pelo talento de Larraín, mas pela presença de dois componentes técnicos que se destacam: a fotografia primordial de Stéphane Fontaine, que além de usar muito bem a profundidade de campo reduzida nas cenas de Jackie atordoada, acerta nos tons de cores, ora vibrantes – como a chegada dos Kennedys no aeroporto de Texas e os flashbacks do casal em momentos alegres –  ora cinzento e melancólico como nas sequencias pós-assassinatos que refletem a tensão claustrofóbica emocional da narrativa. Por sua vez, a trilha sonora de Mica Levi que já havia feito um trabalho brilhante em Sob a Pele (2014), aqui cria uma trilha devastadora que ressoa entre o angustiante e dramático que permite a direção de Larrain elaborar toda sua atmosfera esquisita e inquietante, que juntamente com a atuação de Portman, criar as complexidades narrativas propostas pela obra.

E não poderia deixar de fazer um parágrafo dedicado a atriz. Natalie consegue ao mesmo tempo criar uma performance que reverencia a verdadeira Jackie, como dá um passo a frente e talvez ofereça uma mulher tão real que nem mesmo os livros de história ou biografias em relação a primeira-dama souberam tão bem captar na sua essência. Se no começo atuação da atriz causa estranheza pela cadência da voz e do sotaque, aos poucos ela vai dominando o espaço, deixando o rastro de uma atuação contida, mas minimalista, na forma como ela reproduz emoção, apenas pelos gestos corporais e olhares. Não deve ganhar o Oscar, porém é uma atuação para ser lembrada e revista sempre que pertinente. Entre os coadjuvantes, destaque para o sempre ótimo Peter Sarsgaard que cria os momentos mais relevantes politicamente falando do filme, como Bobby Kennedy e o padre de John Hurt. Vê-lo falando sobre as angústias, inseguranças, morte e o sentido da vida, deixa uma sensação de paz e espírito como se o próprio ator já antevisse a chegada do seu fim.

É claro que Jackie apresenta seus defeitos: o excesso de citação da Lenda de Camelot acaba expondo muito o texto no seu didatismo. A dinâmica da entrevista entre Billy Crudup e Portman é frágil e acaba deixando a narrativa oscilante por concentrar-se tempo demais nesta subtrama e é uma pena que neste sentido, o filme não desenvolva o ótimo jogo de tensão feita por Ron Howard em Frost/Nixon. Pode-se dizer que o formalismo técnico um tanto quanto exibicionista da câmera de Larraín acabe se sobrepondo – em alguns momentos – a própria narrativa de estudo de personagem. Ainda assim, Jackie é ousado, por fugir dos lugares-comuns das biografias, em explorar o paradoxo de Jackie Kennedy e mostrá-la mais perto da dimensão humana. Uma obra original que tem na sua base, uma caracterização forte de sua atriz principal e um trabalho técnico por excelência. Não tem como não negar o quanto é um trabalho instigante, provocador e investigativo de um dos maiores traumas coletivos da história americana, porém, sob a ótica da subjetividade humana.