George A.Romero será sempre lembrado pelos filmes de zumbis. O sucesso cult adquirido ao longo dos anos dentro da temática dos filmes de mortos-vivos, permitiu que seu nome fosse associado como referência ao gênero. Mas não apenas de zumbis, vive o cinema de Romero. Entre 1968, data que marcou o lançamento de A Noite dos Mortos-Vivosque revolucionou o gênero de horror, além de reinventar a figura do zumbi – e Despertar dos Mortos (1978), segundo filme da trilogia dos mortos-vivos, dez anos se passaram. Neste período, o cineasta lançou quatro trabalhos que apesar de não ganharem a mesma atenção por parte do público e da crítica, com certeza honram o cinema de guerrilha urbana praticado pelo diretor, sempre marcado por textos político-sociais em relação à cultura do medo e a paranoia americana da época.

Entre estes filmes de zumbis, encontram-se duas belas obras do cineasta: O Exército do Extermínio (1973), um trabalho variante da saga zumbiniana (troca-se os mortos-vivos por infectados) e Martin (1977), um conto melancólico sobre o vampirismo emocional que desconstrói o mito do vampiro clássico criado na literatura de Bram Stoker e nos filmes do Estúdio Hammer nas décadas de 50 e 60 para repaginá-lo para metade da década de 70, onde o sonho americano já não era mais o mesmo, graças as desigualdades sociais geradas pela guerra do Vietnã

A história é centrada em Martin (John Amplas, em sua estreia no cinema), um jovem que acredita ser um vampiro com mais de 85 anos. De aparência jovem e o fascínio por beber sangue humano, o garoto vai morar na casa de um parente em Pittsburg (cidade natal de Romero, onde geralmente os seus filmes passam). O familiar é seu primo-tio Cuda (o ótimo Lincoln Maazel), um católico conservador reacionário que mesmo contrário à vinda de Martin, o aceita em casa, por acreditar que o jovem faz parte de uma maldição familiar. Sua única imposição: Martin não deve atacar ninguém da comunidade. Na cidade, ele vai fazer amizade com a prima Tina (interpretada pela esposa de Romero na vida real, Christine Forrest) e se relacionar com Sra. Santini (Elyane Nadeu), uma jovem casada e frustrada sexualmente.

O velho Romero é um autor que sabe como trabalhar mitos do mundo fantástico dentro de um tratamento realístico. Depois dos zumbis e suas alegorias sociais, o cineasta já se aventurou pelo mundo das bruxas em Season of the Witch (1972) onde uma mulher suburbana se vê diante de assassinatos relacionados à bruxaria. Em Martin, ele delineia a figura do vampiro em algo real e palpável, oferecendo o seu velho toque de transformar o sobrenatural/fantástico em algo realista e ao mesmo intenso.

A direção seca, crua e brutal de Romero é o elemento que enriquece a narrativa de Martin, até porque ajuda a definir a sua forte crítica social e religiosa presente durante toda a projeção. O diretor joga o espectador desde início no conflito do personagem principal, sem dar maiores explicações, deixando os fatos serem compreendidos à medida que as situações são desenvolvidas pelo roteiro. A própria figura do vampiro adquire um olhar diferenciado: ela não é romantizada e seu personagem é repleto de culpa e amargura que foge do caráter clássico (que imaginamos) dos vampiros. Martin não teme cruzes ou a luz do dia, nem morde suas vítimas. Na verdade, ele as dopa com sedativos para depois lhes corta os pulsos com uma lâmina de gilete e assim beber o seu sangue.

Romero sempre mostrou carinho pelos personagens marginalizados e Martin não foge à regra. Podemos até julgar que o comportamento do jovem é de um sociopata, mas à medida que o roteiro coloca o personagem como condutor da trama perante os olhos do espectador é que compreendemos seus conflitos e descobrimos que no fundo, ele é uma vítima do meio social castrador e conservador que promove comportamentos perversos nos seus atores sociais. No fundo, Martin é um jovem desajustado em busca da sua identidade e sexualidade, em uma realidade insana que julga e destrói os seus desejos, materializada na figura abusiva de Cuda.  Não é à toa, que o cineasta mostra, por meio de flashbacks (todo filmado em preto e branco), o passado de Martin. Nele, se vê um jovem normal, apaixonado por uma garota, mas perseguido por pessoas que impedem que seus desejos se concretizem apenas em razão das convenções supersticiosas, afinal ele é um vampiro. Essa história se repetirá ou Martin encontrará finalmente sua redenção?

Neste sentido, o cineasta transforma a adolescência e o diferente em uma metáfora forte para o vampirismo social. A relação de Martin e a Sra Santini representa bem personagens que sofrem pelas suas dificuldades de inadequação em uma sociedade alienadora. Ele na busca de curar o seu vício por sangue, uma clara metáfora do seu vazio emocional que deseja humanidade. Ela em sanar sua solidão e frustração de um casamento fracassado. Ambos desajustados se reconhecem como pessoas naquilo que buscam: o desejo de ser amado e desta forma sentirem-se “normais” frente ao meio.

O roteiro não deixa de colocar em debate, a questão da hipocrisia religiosa e social como bases que regem a sociedade. Há uma forte mensagem contra o catolicismo que transforma o filme quase numa heresia contra os dogmas religiosos católicos. Destaque para ótima atuação de Lincoln Maazel, assustador como Cuda. De acordo com o IMDB, o ator viveu até os 106 anos de idade, elemento que dá um tom vampiresco ao seu personagem. Já John Amplas tem uma estreia interessante, criando um protagonista misterioso e humano. O ator voltaria a trabalhar com o cineasta na terceira parte da trilogia dos mortos-vivos, O Dia dos Mortos (1985). O próprio Romero interpreta um padre que sofre uma saia justa de Cuda, o que demonstra que nem padres tem vida fácil no filme. A fotografia de Michael Gornick é experimental e crua, de paletas frias que transforma o cenário da Pensilvânia/Pittsburg em um verdadeiro cemitério existencial de emoções.

Em linhas gerais, Martin é o melhor trabalho de Romero fora do mundo dos mortos-vivos, inclusive nas entrevistas, o diretor considera sua obra favorita. É um dos filmes de vampiros mais inusitados e estranhos em torno da sua mitologia. Não espere um filme clássico de vampiro, até porque o ritmo é lento, quase experimental. Logo, ele é um drama psicológico niilista, amargurado e desolador por parte de Romero. É a desconstrução do mito do vampiro para reconstruí-lo sob as lentes da intolerância e a alienação católica fervorosa. No cinema autoral do “padrinho dos zumbis”, os personagens e contextos sociais importam mais que sua dinâmica.