O diretor Mario Bava (1914-1980) é conhecido pelo seu legado cinematográfico como o Maestro do Macabro. Por mais que esta denominação possa associá-lo a um cinema de baixa qualidade, geralmente batizado de trash, não se engane: Bava é um dos maiores “estetas” – entenda por esta palavra algo próximo de cinema de autor – que já passaram pela Sétima Arte. Sua importância no gênero de horror é enorme: criou o terror gótico italiano em As Três Máscaras do Terror, elaborou o estilo voyeurístico dos giallos em Seis Mulheres Para o Assassino, e as regras do slasher americano com Banho de Sangue. Sem contar Planeta dos Vampiros, que serviu de base para Alien – O Oitavo Passageiro.

Essa alcunha, por si só, é mais do que merecida e, pessoalmente, coloco Bava no mesmo patamar de Hitchcook – alguns chamam o diretor italiano de Hitchcock da Cinecittà –, principalmente no cuidado da arte e da estética, com uma obsessão pelos detalhes da criação cinematográfica. São trabalhos que, mesmo com orçamentos financeiros modestos, passam a impressão de elegância e garbo ao espectador, como se um grande estúdio estivesse patrocinando o filme. É claro que Bava sempre foi um diretor com uma predileção maior pela violência e pelo sobrenatural do que o inglês careca. A década de 60 representou na sua carreira o seu momento mais prolífico, deixando a sua marca autoral no horror gótico, pois enquanto todos filmavam em preto e branco, Bava adorava encenar as suas produções em cores.

O Chicote e o Corpo (1963) é da época de ouro do cineasta; sem dúvida, o trabalho que melhor sintetiza seu cinema, principalmente para quem deseja conhecê-lo na essência. Nele, estão presentes as ferramentas da encenação: a opulência visual; a bela fotografia com as paletas das mais variadas cores; o uso de sombras para encenar o horror gótico; a sugestão como elemento de construção do suspense e da atmosfera; os olhares sobre a violência urbana e familiar e os vieses psicanalíticos dos personagens dentro dos seus conflitos.

No filme, Christopher Lee personifica o sádico Kurt Menliff, que retorna com o intuito de parabenizar o irmão pelo casamento com a bela Nevenka (a linda atriz palestina Daliah Lavi) e pedir perdão ao seu pai, que o desertou pela sua conduta amoral e perversa. O dramalhão mexicano ganha contornos maiores quando descobrimos que Kurt tem um envolvimento amoroso e sexual secreto com a cunhada. Na noite da sua chegada, ele é assassinado. Um clima de paranoia e mistério – estilo Agatha Christie – se instala no castelo da família e a desconfiança de que Kurt voltou dos mortos para assombrá-los cresce cada vez mais. Ele morreu ou não passa de mais uma farsa do filho bastardo?

Lançado inicialmente no Brasil com o título esdrúxulo de Drácula, o Vampiro do Sexo (para aproveitar a presença no elenco do maior Conde Drácula do cinema, Christopher Lee), o filme de Bava é uma espécie de versão sobrenatural europeia de Um Corpo que Cai de Hitchcook, muito em razão do amor e obsessão por uma possível figura fantasmática. Assim como o mestre do suspense, o italiano é genial em associar um enredo de mistério e suspense com elementos sobrenaturais.

Mas as diferenças acabam aí. Bava é um amante do horror gótico por excelência e permeia toda a estrutura narrativa com tensão sexual e altas doses de sadomasoquismo, onde a luxúria ganha contornos eróticos e fantásticos na relação amoroso-carnal de Kurt e Nevenka, que por sua vez gosta de levar “chicotadas de amor” do cunhado: “Você não mudou. Você sempre adorou violência” diz Kurt para ela.

Essa construção de atmosfera é toda pautada na culpa feminina, de uma mulher que vive o dilema de amar o irmão do marido, relação que trafega na dicotomia do mundo dos vivos (a repulsa) e dos mortos (a atração), acentuada na paixão fantasmática de Nevenka após a “morte” de Kurt. A culpa e o desejo são responsáveis pelo amor necrófilo ambivalente, que, por mais prazeroso que seja, precisa ser negado e reprimido. Para o diretor, a singularidade feminina é forte e intensa, mas o seu desejo é interditado pelo conservadorismo machista da época. Logo, o filme é também um olhar crítico sobre a decadência familiar, das suas relações desestruturadas, repletas de rixas familiares que acabam causando os conflitos emocionais dos seus personagens.

Apesar do texto interessante, a sacada genial de O Chicote e o Corpo é o jogo psicológico e atmosférico proporcionado pelo maestro Bava, que oferece ao espectador um cinema sensorial em cada frame. Ele manipula nossas sensações com imagens e sons que ilustram a alegoria de uma pintura macabra que é tanto elegante quanto apuradíssima. É um estudo da misé-en-scene cinematográfica, da utilização da trilha sonora fantasmagórica de Carlo Rustichelli (chorosa e ao mesmo tempo fúnebre), da fotografia de cores cromáticas de encher os olhos de Ubaldo Terzano – reparem no uso de cores coloridas como o azul, o vermelho e o verde em vários momentos do filme – aos artifícios clássicos do cinema, como a ampliação de sons naturais ao fundo (Bava utilizava o vento sempre como um personagem onipresente nos seus filmes) e a versatilidade da sua câmera subjetiva, elemento majestoso na captação dos espaços labirínticos e soturnos do seu cenário.

Temos diversas cenas memoráveis, mas destacam-se aquelas que utilizam o truque ótico em acentuar partes do corpo humano na penumbra. A primeira, na expressão diabólica de Lee. Bava extrai da saturação de cores um simbolismo interessante, em que o rosto ganha tonalidades diferentes à medida que ele se aproxima da câmera, indicando a passagem de Kurt dos mortos, ilustrado pelo verde fúnebre, a realidade dos vivos, no caso, o vermelho símbolo do desejo e da paixão. Já em outra sequência, o cineasta transforma a mão de Kurt que surge no escuro em uma opulenta aranha que escancara o coito sexual da dominação. O elenco não decepciona. Christopher Lee deixa sua marca com outro personagem memorável e assustador, mas vale destacar a atuação emocionalmente instável de Daliah Lavi, que personifica uma das mulheres mais passionais e interessantes do cinema de horror.

No geral, O Chicote e o Corpo é um trabalho obrigatório para quem curte horror psicológico. Cheio de estilo, um dos melhores estudos sobre a psicologia devassa dos seres humanos. Não estranhe se você ver a direção do filme assinada por John M. Old. Bava o dirigiu sob pseudônimo, pois na época era comum colocar nomes americanos em filmes europeus, para realizarem uma boa carreira na América. Por fim, um filme polêmico, censurado na sua época pelas cenas  eróticas e masoquistas – o seu diretor tachado como pervertido pela grande maioria. Isso não tira os méritos deste grande exercício de suspense psicológico mórbido, encenado de forma esplendorosa por um dos maiores maestros do cinema.