O protagonista de O Cidadão Ilustre é um sujeito bem sincero. Seu nome é Daniel Mantovani, é um escritor renomado e logo na primeira cena do filme, ele basicamente manda o Prêmio Nobel se danar. Mantovani passou a carreira inteira escrevendo na Europa. Cinco anos depois do seu momento no Nobel, ele recebe um convite para retornar à sua cidadezinha natal de Salas, na Argentina, para receber o título de cidadão ilustre do lugar. Por estar preso numa fase baixa, não tendo escrito nada em vários anos, ele aceita ir.

Chegando à cidade, as coisas começam a dar errado: praticamente todos os carros nos quais ele entra não funcionam, depois ele “paga um mico” circulando no carro de bombeiros na companhia da rainha da beleza local, vê uma apresentação piegas em Power Point sobre a sua vida, e dá palestras para um público de gatos-pingados que só diminui com o tempo… Os dias passam e pessoas cada vez mais provincianas e esquisitas e incidentes cada vez mais bizarros começam a cruzar o seu caminho, testando os limites do seu desprezo por aquele lugarejo e da sua propensão para a sinceridade…

O Cidadão Ilustre é uma sensacional “comédia do constrangimento”, na qual o roteirista Andrés Duprat e os diretores Mariano Cohn e Gastón Duprat se aproveitam para sempre deixar o espectador na dúvida. Em quase todo o filme, a tensão é constante e muitas vezes não sabemos se rimos de nervoso ou de algo genuinamente engraçado. A acidez de algumas cenas é intensificada pela câmera nervosa, quase sempre na mão. Mesmo assim, outro momento bastante tenso e com umas pitadas de humor ocorre com a câmera estacionada: é a cena em que Mantovani conversa com um pai que quer uma “doação”, um favorzinho do cara rico para comprar uma cadeira de rodas melhor para o filho. Ali, a tensão vem dos diálogos e da postura dos atores.

Se a história e até o estilo de direção são imprevisíveis, a constante do filme é a atuação de Oscar Martínez como Mantovani. O ator, que o público brasileiro descobriu com Relatos Selvagens (2014), traz um pouco da sisudez do seu personagem naquele filme, mas fora isso, Mantovani é uma criação inspirada do roteirista e, particularmente, do ator. O roteiro não nos deixa esquecer que o protagonista é um cara meio arrogante, e cabe a Martínez nos fazer simpatizar, ao menos um pouco, com a figura. Sempre com uma postura tensa e rápido nos diálogos, Mantovani é uma figura na defensiva a cada minuto dentro da cidade onde cresceu. Mas em momentos especiais, o ator nos faz compreender um pouco aquele homem – como no close onde ele conta uma das suas histórias ao motorista, ali compreendemos a paixão do sujeito pela escrita e pela sua arte. E é impossível não soltar uma risada da dor do coitado na cena em que perguntam ao protagonista quando ele vai embora e Martínez responde “Depois de amanhã” junto com um leve cair de ombros, como se sentindo o peso das horas até a sua saída daquele lugar… É uma atuação cheia de sutilezas que demonstra a competência e inteligência do intérprete.

Quanto mais se aproxima do final, mais O Cidadão Ilustre abandona a sua comédia para se tornar algo mais sombrio, e enfim, uma meditação sobre a arte e a natureza das histórias contadas, tanto em livros quanto no cinema. Mais um grande exemplar do cinema dos nossos hermanos, O Cidadão Ilustre desafia o público e o deixa até desconfortável, mas depois o recompensa com uma grande experiência, uma que é imprevisível, engraçada, bizarra e inteligente. É um filme tão especial quanto o seu protagonista, com ambos conseguindo extrair da sua dor e do seu embaraço a arte que lhes fazem ser aclamados.