Com o passar do tempo, a memória de muitas coisas, até o que não merecia, acaba se perdendo. O processo é natural, irrefreável, e vale pra tudo. O cinema, por exemplo. Quem poderia imaginar em, digamos, 1940, que os westerns seriam extintos da telona trinta anos depois? Ou que Buster Keaton deixaria de ser um nome popular para virar domínio de cinéfilos?

Até mesmo nomes que se julgavam inabaláveis às vezes podem sofrer o revés do tempo. Charles Chaplin ainda é considerado uma das figuras essenciais do cinema, mas seus filmes aparecem com frequência cada vez menor nas listas de 100 mais da Sight & Sound, compiladas por críticos e profissionais da indústria a cada década. O mesmo acontece com John Ford. Durante muito tempo tido como “O” diretor do século passado, seus filmes vêm sofrendo a decadência geral – terrível injustiça – a que os westerns foram condenados desde 1970.

Uma das poucas obras que parece resistir a todos os desgastes é O Mágico de Oz. Desde o seu lançamento, em 15 de agosto de 1939, o filme é aquele raríssimo caso de unanimidade no cinema, uma obra admirada por público, crítica e profissionais do ramo quase sem exceções, pairando magnânima sobre 75 anos de avanços técnicos e temáticos, movimentos, escolas e facções.

Os ranhetas – entre os quais, durante muito tempo, me incluí – podem achar que o filme sobra em pieguice, maniqueísmo e até cafonice, mas os admiradores é que estão com a razão: a obra é um prodígio de imaginação visual e sabedoria no uso das possibilidades do cinema.

A trama é tão simples e icônica quanto o resto: Dorothy (Judy Garland, toda graça, carisma e a voz magnífica que iria encantar o mundo) é uma garota ingênua do Kansas, no início do século XX. Assustada com a possibilidade de perder o cachorrinho, Totó (interpretado pela simpática – sim, ela é fêmea – Terry), ela foge de casa e acaba sendo apanhada por um tornado, que a lança numa terra estranha, cheia de criaturinhas peculiares e paisagens de cores extravagantes – é o reino mágico de Oz, governado por um misterioso feiticeiro e acossado por disputas entre bruxas boas e más. Uma simples garota na “Terra”, Dorothy é considerada uma heroína pelos habitantes locais, mas, para voltar para casa, ela precisará enfrentar uma série de desafios, para os quais contará com a ajuda de três tipos tão deslocados quanto ela mesma: o Espantalho (Ray Bolger), cujo maior sonho é ter um cérebro, o Homem de Lata (Jack Haley), que busca um coração, e o Leão Covarde (Bert Lahr), que quer – isso mesmo – coragem.

Um sem-número de leituras já foi oferecido para tentar explicar o fascínio do filme: psiquiatras acham que a obra traduz de forma vívida o inconsciente e os desejos reprimidos da humanidade, visão acentuada pelo contraste entre a realidade cinzenta de Dorothy e o esplendor da terra onírica de Oz; sociólogos, por sua vez, acreditam que a obra propõe um mundo idealizado de aceitação das diferenças e triunfo da diversidade, o que seria explicado pelo fato de os heróis do filme serem, cada um, um enjeitado em seu lugar de origem; já teóricos do mundo LGBT – por sinal, o filme era exibido em paradas e reuniões da comunidade gay na década de 1970, nos Estados Unidos – afirmam que a grande questão do filme é a necessidade de Dorothy de se afirmar entre seus pares, o que ela só consegue ao fugir da realidade triste de sua Kansas natal.

Sejam lá quais forem as intenções por trás da história de L. Frank Baum, publicada pela primeira vez em 1900, a trama é considerada hoje a grande obra de fantasia surgida nos Estados Unidos, sobretudo por causa do sucesso estrondoso e do impacto cultural provocado pelo filme nestas sete décadas.  A verdade, porém, é que a gestação do que hoje em dia parece ter nascido clássico foi longa e penosa, e seus realizadores temeram por um fracasso até o dia do lançamento.

o mágico de oz


Para se ter uma ideia, as filmagens quebraram recordes de demora para o período (seis meses), e envolveram a  participação de três roteiristas (com pelo menos outros dez colaboradores no processo) e cinco diretores (com Victor Fleming filmando o grosso, mais uma ajudinha de King Vidor no final), além de duas mudanças importantes no elenco (o Homem de Lata, que começou interpretado por Buddy Ebsen, e a Bruxa Má do Oeste, que foi recusada por Gale Sondergaard) e mais cinco longos meses de pós-produção.

Toda essa engenharia reflete bem o período em que o filme foi realizado. Na década de 1930, o cinema entrava na maturidade, com a consolidação do som, a cristalização dos diferentes gêneros e a criação dos grandes estúdios, dando origem a um negócio de proporções globais, cujo centro de irradiação seria Hollywood. Diretores europeus consagrados, como F.W. Murnau, Alfred Hitchcock e Ernst Lubitsch eram convidados a fazer carreira por lá, bem como estrelas como Greta Garbo, Rodolfo Valentino e Carmen Miranda.

O antigo “sistema” se baseava na figura do produtor, o executivo do estúdio que bancava as obras, mandava e desmandava na equipe e, quando dotado de ambição artística, moldava os filmes a uma visão própria, peculiar. Grandes nomes do ramo, como David O. Selznick (…E o Vento Levou), tiveram um papel crucial em fazer desta a “era de ouro” de Hollywood, um período em que o cinema comercial exibia uma vitalidade técnica e de conteúdo de fazer inveja a qualquer Cinema Novo por aí.

Um desses produtores ambiciosos foi o responsável por trazer o Reino de Oz à vida. Mervyn LeRoy era fã do romance original, e não sossegou até conseguir comprar os direitos sobre a filmagem – e, quando de posse destes, lutou para garantir que o produto final fosse capaz de provocar o mesmo deslumbramento que ele, como leitor, sentiu ao conhecer a obra a primeira vez. Em meio à filmagem conturbada, marcada por acidentes – o Homem de Lata original, Buddy Ebsen, sofreu uma reação alérgica quase fatal à maquiagem, e a bruxa má Margaret Hamilton sairia com sérias queimaduras de sua primeira aparição em Munchkinland –, LeRoy seria o esteio que faria o filme chegar à forma como o conhecemos hoje.

O que não é demérito algum para o trabalho espetacular de Victor Fleming na direção. Comandando todo o segmento colorido do filme – o que realmente interessa –, o americano de 40 anos foi o idealizador de sequências antológicas, como a mudança do mundo sépia, comezinho, do Kansas, para o delírio colorido do reino de Oz, com uma longa e maravilhosa tomada aérea que até hoje torna ridículos os planos frenéticos de Michael Bay. Com controle absoluto da mise-en-scène e dos enquadramentos, o diretor emprestou elegância a uma história que, em outras mãos, poderia facilmente cair no ridículo. Fleming, porém, abandonou o filme em sua fase final, para assinar a direção de outro clássico que se mostraria igualmente imune ao tempo: o já citado …E o Vento Levou (1939), o que o torna, fácil, o maior diretor da história em um único ano.

Outros colaboradores decisivos foram o fotógrafo Ernest Haller, que, logo na primeira utilização massiva do Technicolor em um longa, criaria um padrão jamais igualado por seus pares, com tons saturados e uma das paletas mais ricas já vistas no cinema, dignas de um Matisse nórdico, além do compositor Harold Arlen, que criaria a canção-tema do filme, um clássico que dispensa introduções: “Somewhere Over the Rainbow” – por sinal, quase limada da obra por executivos insensíveis, que acharam que a peça atrasaria a continuidade da trama. Feitas em parceria com o letrista E. Y. “Yip” Harburg, as canções de Arlen ajudariam a imprimir o estilo ingênuo e vibrante da história na tela, além de darem um grande boost à carreira do compositor, que logo passaria a ser gravado por Frank Sinatra, Ella Fitzgerald e outros cantores nível 24 quilates da música popular.

o mágico de oz estrada tijolos amarelos


Falei aqui do contexto histórico e das muitas qualidades que continuam vivas em O Mágico de Oz, 75 anos depois. Mas gostaria de reservar este trecho final para aquela que, a meu ver, é a garantia da imortalidade da obra por outros 75, 750, 7500 anos afora, enquanto houver cinema (ou humanidade): Judy Garland.

A atriz, que contava 17 anos à época, tem uma performance tão encantadora, tão inspirada, tão cheia de vida, que ainda hoje é capaz de mesmerizar quem assiste ao filme pela primeira vez. A maturidade, o domínio do ritmo, a cor jazzística em sua voz também são dignas de admiração para uma intérprete tão nova. Saltando direto de O Mágico de Oz para a imortalidade, Judy provaria ser muito mais do que um talento juvenil, fugaz, mas tem mais – sua carreira posterior, a despeito de toda a infelicidade, só iria ratificar a opinião de Fred Astaire, ele próprio um dos eternos no panteão da Sétima Arte: “a maior entertainer que o mundo já viu”. Recomendo, de todo o coração, acompanhar a carreira da artista, como atriz e como cantora – mas, se tiver que escolher um só exemplar de cada faceta, o brilho e o frescor exibidos em O Mágico de Oz e a maturidade pungente de suas interpretações no show Judy at Carnegie Hall (compare as versões de “Over the Rainbow” em cada trabalho) podem explicar infinitamente mais sobre Judy do que qualquer vã palavra minha.

judy garland totó o mágico de oz