Transpor uma obra literária, peça teatral ou até mesmo um videogame para o cinema não é tarefa fácil. Para ser bem-sucedido, é preciso acima de tudo entender que a fonte original e o filme final são meios diferentes e, portanto, precisam ser tratados dessa forma, com as devidas mudanças que forem necessárias. Em seu primeiro trabalho de ficção, o diretor de documentários Guilherme Coelho entende esta necessidade e não foge de fazer algumas alterações na história original escrita pelo autor amazonense Milton Hatoum. O problema é que, ainda assim, o resultado final se parece demais com um “livro filmado”.

Órfãos do Eldorado“Órfãos do Eldorado” conta a história de Arminto, filho único de uma família abastada que, após viver anos afastado, volta para Belém ao receber notícias de que o pai estava doente. Ao chegar, ele é confrontado com fantasmas e segredos do passado, os quais tomam forma principalmente na figura de Florita, empregada mestiça da casa que também serviu de amante para o pai e segunda mãe para o filho. Desde o início, Coelho opta por uma narrativa lenta que, ao invés de contemplativa, engessa o filme pela falta de naturalidade com que os personagens interagem entre si.

Os diálogos são monossilábicos e os silêncios quase eternos. Isso por si só não seria um problema, mas a questão é que os diálogos parecem ter sido reproduzidos quase que exatamente como estão no livro, os quais não soam nada naturais ao saírem da boca dos atores. Faltou aqui um melhor trabalho de adaptação da linguagem. Para piorar, os silêncios que se seguem no meio das conversas parecem ocupar o espaço onde, no livro, existem descrições detalhadas do ambiente, da reação e do pensamento dos personagens. Infelizmente, nestes momentos, o filme não consegue traduzir estas descrições em imagens e o que temos na tela é uma sucessão de longas pausas que não apenas quebram o ritmo, mas também diluem o próprio impacto e a emoção das cenas. Isso acontece principalmente na primeira metade da projeção.

Com falhas claras como essas, o resultado final não deveria ser nada além de mediano, certo? Mas a verdade é que mesmo agora, mais de 24 horas desde que assisti ao filme, a história não sai da minha cabeça. Os motivos? São vários, mas vamos começar pelo elenco.

Daniel de Oliveira está completamente entregue no papel principal e consegue nos fazer sofrer com a jornada de obsessão e loucura de Arminto, mesmo que os motivos para as drásticas decisões que o seu personagem toma na segunda metade do filme nunca fiquem muito claras. Porém, é Dira Paes quem comanda a tela.

órfãos do eldoradoCom traços físicos e atitude tipicamente caboclos, a atriz está hipnotizante desde o primeiro momento em que surge em cena. Como uma verdadeira femme fatale indígena, sua personagem exerce um imenso poder de sedução não apenas através da sexualidade, mas principalmente por meio da sua forte crença nas lendas e mitos amazônicos, os quais incutiu desde muito cedo no subconsciente do jovem Arminto. Quando em determinado momento vemos a atriz no escuro, agachada e encostada contra a parede, a imagem que imediatamente me veio à cabeça foi a de uma onça, silenciosa e sorrateira, mas cujo brilho selvagem nos olhos deixa claro que ela está apenas aguardando o momento exato para o ataque. A relação incandescente entre Florita e Arminto, traduzida nas performances intensas de Dira Paes e Daniel de Oliveira, é o motor emocional que mantém o nosso interesse até literalmente o último minuto da projeção.

E se por um lado faltou ao diretor o tato para diminuir a linguagem literária do roteiro, por outro não há como negar o talento imenso de Guilherme Coelho para criar imagens arrebatadoras. Desde o enigmático plano-sequência que abre o longa até a angustiante cena final que exige que o espectador conecte os pontos por si próprio, o diretor se mostra extremamente hábil em construir uma atmosfera de fábula que, mesmo evocando o misticismo e os mistérios da floresta e suas águas, nunca deixa de exprimir a dura realidade do modo de vida das comunidades ribeirinhas. Sim, as imagens da floresta são lindas, mas elas estão envolvidas por uma constante atmosfera de decadência e um crescente senso de paranóia e loucura. Estamos numa terra de sonhos, mas que a qualquer momento podem virar um pesadelo, e o diretor transforma esta ameaça em algo palpável.

Órfãos do Eldorado, portanto, me deixou profundamente dividido. Não posso ignorar suas falhas, mas também não posso negar o efeito inebriante que suas imagens e atmosfera tiveram sobre mim. Esse é um daqueles filmes que merece uma segunda visita, onde a balança entre os seus defeitos e suas qualidades pode finalmente pender para um dos lados. Por enquanto, eu lembro apenas daquele ditado que diz que a tentativa frustrada de alguns pode ser mais espetacular que a vitória de outros. Na pior das hipóteses, “Órfãos do Eldorado” é uma dessas tentativas frustradas, mas ainda assim espetaculares.