Considerado um dos gênios das últimas décadas, Steve Jobs é uma figura que sempre dividiu opiniões: ainda que sua presença fosse incontestável no quesito ‘marketing’, há quem duvide do peso que ele tinha na criação dos produtos Apple e aqueles que defendem que, por trás da fachada, ele era um sujeito calculista e até mesmo detestável. Todas essas faces de Jobs são exploradas com uma intensidade teatral no novo filme de Danny Boyle, indicado a dois Oscar.

Caso a sua expectativa em relação a Steve Jobs seja a de uma biografia quadradinha e cheia de lições de vida à la “Uma Mente Brilhante” ou “A Teoria de Tudo”, já adianto que o filme é o completo avesso disso. O roteiro de Aaron Sorkin concebe a produção em três atos que mostram os bastidores de três lançamentos importantes de Jobs: o MacIntosh em 1984, o NeXT em 1988 e o iMac*, dez anos depois.

Assim como em outros roteiros de Sorkin, os diálogos são os astros do show. Há de se traçar um paralelo com “A Rede Social”, onde ele conseguia, no meio de qualquer uma de suas verborrágicas cenas, transmitir a essência do personagem em alguma frase avulsa. Isso acontece em vários momentos de “Steve Jobs”, como o embate entre o protagonista e seu ex-braço direito, Steve Wozniak, onde vemos Jobs comparar a Apple a uma orquestra. “Músicos tocam instrumentos. Eu toco a orquestra”, diz o personagem vivido por Michael Fassbender a um Wozniak que “ousa” questionar a sua genialidade.


O grande truque

Pode soar exagerado que o mundo resolva desabar exatamente no dia da apresentação do MacIntosh, por exemplo, mas lembremos que estamos diante de um produto de ficção, e não de um documentário. Cinema é magia, é truque, é um drible nas expectativas de quem está sentado na poltrona como espectador e “Steve Jobs” não desaponta nesse sentido. Apesar de alguns diálogos explicativos demais, a estrutura proposta por Sorkin é fundamental para que criemos empatia pelo personagem-título.

A construção de Jobs no roteiro de Sorkin, a propósito, retrata um homem confuso nessa linha tênue da arrogância e da confiança. Em cada ato, encontramos um Steve Jobs diferente: do homem deslumbrado de 1984 ao ápice da prepotência em 1988 até o salto final de uma década, onde vemos o CEO da Apple com sua gola rolê preta indefectível.

Na pele de Jobs, Michael Fassbender vai além da frieza e cria um sujeito que, apesar de confortável em seu egocentrismo, se permite a pequenos momentos de vulnerabilidade, principalmente em seus relutantes encontros com as três mulheres de sua vida: a filha, Lisa, a ex (Katherine Waterston, ótima) e o braço direito, Joanna Hoffman. Como esta última, Kate Winslet entrega um de seus melhores trabalhos e dá vida a uma mulher que claramente abriu mão do pessoal e do profissional para seguir Jobs em qualquer empreitada. Com isso, o momento em que Hoffman finalmente explode é um dos melhores do longa: ela não tem medo de enfrentar o arrogante chefe e a humanidade com que Winslet confere a essa cena em particular faz a narrativa ganhar chão emocional.


A meticulosidade de Sorkin encontra a loucura de Boyle

Conhecido pelo ritmo frenético de filmes como “Trainspotting” e “Quem Quer Ser Um Milionário?”, Danny Boyle até sai da sua zona de conforto, dada a temática de “Steve Jobs”, mas são os pequenos ecos de seu estilo característico que conferem à produção uma visceralidade sem a qual o roteiro de Sorkin poderia ficar enfadonho.

A direção de Boyle equilibra a sobriedade do roteiro com a explosão das atuações de Fassbender e Winslet. O único respiro é no último e mais longo ato, que é também quando vemos um Jobs com o egocentrismo um pouco menos latente. Tudo isso é ajudado pela bela fotografia de Alwin Külcher, que ambienta o espectador com tons característicos a cada época – destaque para o granulado dos anos 1980, que logo dá lugar a uma imagem mais limpa ao passo que o século XX se aproxima do fim.

A montagem também é fundamental no sucesso de “Steve Jobs”. O trabalho de Elliot Graham tem toques de “Birdman”, mas também fala alto à geração MTV, que cresceu adorando cada produto lançado pela Apple, ao intercalar os atos com um mix de previsões para o futuro e muita cultura pop.

O grande êxito de “Steve Jobs” é não se prender às convenções do que a versão cinematográfica do “herói” deve retratar. Isso justifica o fracasso nas bilheterias e a pouca sintonia com os votantes do Oscar. Assim como foi com “Chatô”, a estrutura deste filme de Boyle e Sorkin não é mastigada, mas isso não significa que seja inacessível. Do contrário: ao fugir do quadrado, “Steve Jobs” faz mágica na tela grande e cria um personagem além da persona.

*quem nunca sonhou em ter um iMac? Saudades dos VJs da MTV lendo os e-mails dos telespectadores naqueles computadores lindões e que, não, Lisa Jobs, não parecem o forninho da Judy Jetson.