Certos filmes nos captam pela simplicidade. Característica que esconde um domínio notável do seu realizador, que compreende que, para fazer um filme que se conecte com o público, precisa-se apenas do que é essencial à linguagem cinematográfica.

Como Chaplin descobrira há bastante tempo, a imagem quando marcante fica na nossa memória, nos preenche, faz com que nos esqueçamos dos diálogos. Aliás, eles soam como intrusos, desnecessários.

A Tartaruga Vermelha, de Michael Dudok de Wit, em co-produção com o estúdio Ghibli dos mestres Hayao Miyazaki e Isao Takahata, é um filme que coloca esses conceitos em prática de maneira muito satisfatória.

Sem nenhum diálogo em toda a sua duração, o filme conta a história de um náufrago que chega a uma ilha isolada depois do seu barco afundar em alto mar. Este homem constrói, por diversas vezes, embarcações para ir embora da ilha, mas é sempre impedido por uma misteriosa tartaruga vermelha, que destrói as jangadas, e parece claramente desafiar o indivíduo. A partir daí… melhor não falar pra não estragar a sua experiência.

Muito mais do que uma escolha estética, a ausência de diálogos traz uma visão bastante madura de cinema do seu diretor. Desenvolvido em um ritmo lento, o filme tem o tempo cadenciado dos ciclos da natureza. Os acontecimentos não vêm por acaso, são construídos por ações cotidianas que se repetem, e que não possuem objetivos além do aqui e agora.

Essa escolha é seguida de maneira tão rigorosa, que o filme aparenta em alguns momentos ser não-narrativo, propondo que o espectador vivencie aquela situação sem se preocupar para onde aquilo vai levar, ou se vai “fazer sentido”.

Assim como diversos trabalhos anteriores do estúdio Ghibli, a trama não se fecha em si, abrindo margem para diversas interpretações sobre os significados dos acontecimentos da trama. Acredito que é um filme que fala de ciclos, de família, de perdão e arrependimento, e de como acontecimentos inesperados nos colocam em situações que exigem de nós algo que achamos não sermos capazes de enfrentar, mas que quando a frustração inicial passa, enxergamos novas perspectivas naquela situação inicialmente tão ruim, e aprendemos a conviver com aquilo, mudando de objetivos, sem que isso signifique retroceder ou se contentar com pouco.

E tudo isso através de um filme que não recorre a diálogos para explicar as suas intenções.

Diferente das animações norte-americanas, repletas de cores e movimentos, A Tartaruga Vermelha opta por desenvolver seus cenários quase de maneira monocromática, investigando apenas diferentes tons das cores predominantes do local: na floresta, o tom é o verde, pela noite tudo se torna cinza, nos passeios pelo mar de dia predomina o azul, nas manhãs ensolaradas na praia, amarelo, e em um pôr do sol durante um importante acontecimento, o vermelho expõe o sentimento do protagonista. Soluções visuais econômicas, mas muito impactantes. Trata-se de um filme belíssimo visualmente, memorável.

Assim como nos filmes de Miyazaki, a fotografia é pensada como se fosse num filme live action. A maneira como os cenários são filmados seguem uma lógica espacial muito coerente com o mundo real, mas ainda assim são condizentes com as incursões na fantasia realizadas pelo filme.

Tão bem realizado quanto à imagem é o desenho de som. Com a ausência de diálogos a ambiência sonora ganha um papel ainda maior para preencher aqueles cenários. É através do belo trabalho de som que aquela praia, floresta, mar, caverna, rio se tornam vivos, ganham personalidade, transformam-se em personagens do filme. Por vezes calmos, silenciosos, depois agitados, barulhentos, nervosos, mas sempre presentes de maneira marcante, interferindo para que o filme seja uma experiência audiovisual completa.

Também bem desenvolvidos são os personagens, que mesmo sem falar se tornam identificáveis, pessoas capazes de nos despertar sentimentos, que nos estimulam a acompanhá-las em sua jornada cotidiana. O apuro com os personagens é tanto, que até os siris da praia são personagens que movem a trama pela maneira como interagem com o espaço e com o protagonista, servindo até como alívio cômico em algumas situações.

A quantidade de assuntos tocados por este filme é grande, como também é o êxito dele em nos atravessar a partir de um estilo tão incomum hoje em dia, e que nos estimula a desacelerar o ritmo de nossas vidas, e enxergar a beleza que está ao nosso redor que passa despercebida.