Poucos filmes transpiram metaforicamente algo de seu contexto de produção, sendo “Touro Indomável” (1980) um dos mais impressionantes nesse e em vários outros sentidos. A obra-prima do diretor Martin Scorsese exala desespero a cada frame, tal como se encontrava o diretor ao acreditar que esse seria o seu último filme, em meio à depressão e problemas com drogas. Como quem caminha solenemente ao fim, Scorsese queria ser 100% fiel à sua visão artística, e o resultado salvou sua carreira e, quem sabe, sua vida.

A jornada de renascimento de Scorsese com “Touro Indomável” se construiu a partir da jornada de autodestruição descrita na história real do lutador de boxe Jake La Motta. Interpretado por Robert De Niro, que apresentou a biografia de La Motta a Scorsese e tentou por anos fazer o filme se tornar realidade, o personagem vai da glória à decadência graças ao seu talento para o ringue, acompanhado de uma quase que total inaptidão para conter seus instintos violentos para com sua família e si mesmo. Dessa maneira, acompanhamos La Motta entre 1941, quando ele ainda busca seu lugar ao sol como lutador, até a aposentadoria em fins dos anos 1950, quando toda sorte de más escolhas e, principalmente, a solidão o assola.

A intensidade de La Mota se delineia a todo o momento com a atuação de De Niro. Seja numa cena de luta, em que o corpo inteiro se mostra essencial para a expressão do personagem, ou num momento familiar ao lidar com o irmão, no qual um simples olhar dá conta de mostrar que a força e a impulsividade estão para além dos ringues, De Niro brinda o espectador com o ápice da sua carreira.

Os treinos como boxeador (o verdadeiro La Motta chegou a afirmar que ele poderia se tornar um lutador profissional!) e seu ganho de peso para mostrar a decaída física e psicológica do personagem ainda impressionam, mesmo num contexto atual em que atores como Christian Bale ou Matthew McConaughey transformam seus corpos de maneiras cada vez mais assustadoras em nome do cinema. No fundo, isso nem importa tanto; a primazia de De Niro é tanta que bastam alguns minutos envolto na história para o espectador simplesmente pensar no personagem, e não no ator. Ele nos faria acreditar em qualquer coisa mesmo que tivesse um travesseiro amarrado na barriga!

Da mesma maneira, Pesci se destaca ao relembrar ao público sua capacidade de entregar uma interpretação mais dinâmica de “baixinho de pavio curto” que aquelas que lembramos com mais facilidade vimos junto a De Niro e Scorsese em “Os Bons Companheiros” (1990) ou “Cassino” (1995). Seu contraponto como Joey à figura totalmente impulsiva de Jake La Mota é digno de ênfase, principalmente pela sacada do roteiro de Paul Schrader (“Taxi Driver”) de permitir ao personagem de Joey transformar-se no decorrer do tempo diegético ao passo que cumpre uma função clara na narrativa do protagonista sem esquecer que, sendo sangue do mesmo sangue, em algum momento o público veria que a impulsividade corre nas veias de ambos os irmãos.

Não apenas as atuações atingem níveis de excelência poucas vezes superados em “Touro Indomável”. A direção de fotografia de Michael Chapman é outro item que torna simples ressaltar. A bela fotografia em preto-e-braco gera a atmosfera ideal para localizar o tempo e o espaço da narrativa, além de dar um tom trágico à trama.

Dessa maneira, o trabalho de Chapman também contribui com a decisão de Scorsese filmar as cenas de luta quase sempre de dentro dos ringues, o que dá à violência destas algo mais que o simples impacto do vigor físico dos lutadores, mas também uma noção de quão belo cada detalhe da luta pode ser, seja por serem brutais como um nocaute regado à sangue ou por serem delicados como os cuidados que os boxeadores recebem de suas respectivas equipes. Desde os momentos iniciais do filme, com um slow motion mostrando La Motta sozinho no ringue, o espectador já é preparado para a quase perfeição em termos de visualidade que o filme traz. Assim fica fácil entender porque Scorsese e a editora Thelma Schoomaker fizeram o trabalho de edição de maneira quase artesanal na própria casa do diretor.

Falando em Schoomaker, eis uma profissional do cinema que merece mais ovação que o que de fato recebe. “Touro Indomável” foi o primeiro longa-metragem de ficção de Scorsese que ela editou, e basta vê-lo uma só vez para entender porque o diretor manteve uma parceria com Thelma ao longo de toda a sua filmografia. Schoomaker tem uma noção absurda de como dar fluidez à edição sem fazer os filmes envelhecerem no decorrer do tempo, além de ajudar a imprimir um senso estético bastante característico para além do trabalho da fotografia e do próprio diretor. Seu entendimento acerca da violência gráfica se sobrepõe à primeira vista, tamanho o impacto que as poucas e breves cenas de luta causam ao espectador, mas também as sutilezas das tensas cenas de vida doméstica apresentam uma dinamicidade através do trabalho de Schoomaker.

Como um trabalho coletivo, “Touro Indomável” se mostra um encontro que parece ter sido escrito nas estrelas. Com tantos profissionais de alto nível envolvidos na produção e todos com vontade máxima de levar o projeto para frente dando o melhor de si, o filme resulta num produto que torna impossível não enveredar para as discussões acerca do cinema como arte e, quiçá, como magia. Assistir ao filme hoje torna absurdo ver entrevistas ou ler reportagens sobre como Scorsese estava à beira de abandonar a direção para sempre, assim como Joe Pesci queria sair do cinema por tempo indeterminado, assim como De Niro passou anos até alguém dar bola para sua ideia de fazer um filme sobre Jake La Motta, assim como Schoomaker quase foi impedida de trabalhar no filme porque não era afiliada à Aliança dos Editores de Cinema, formada exclusivamente por homens na época…

“Touro Indomável” é o tipo de filme que lembra ao espectador de ontem e de hoje a noção de sagrado que o cinéfilo deposita na sala de cinema. Uma obra de sua envergadura justifica os “chatos” que reclamam das conversas paralelas nas salas de exibição, que eventualmente até deixam a pipoca de lado para nem ouvirem o barulho de sua própria mastigação e que não entendem como pode existir gente que assiste a filme após filme sem que eles nada signifiquem para essas pessoas, pois tudo nele chama a atenção e exige um espaço maior que o do ambiente da televisão e do sofá. É um filme impregnado de vida, ao mesmo tempo em que regido pela noção mais apurada de técnica e arte. Se os tempos de proliferação desses “chatos” estão à beira de ruírem com as mudanças que observamos nas formas atuais de fruição do cinema, no qual o pause, a multiatenção, o 3D e a imposição cada vez maior dos blockbusters imergem o espectador nos filmes de maneira tão diversa da contemplação, que a experiência da intensidade old fashion de um filme como “Touro Indomável” não seja de todo esquecida tão cedo.

Nota: 10,0