“O padre furtou a moça, fugiu.
Pedras caem no padre, deslizam
A moça grudou no padre, vira sombra,
Aragem matinal soprando no padre.
Ninguém prende aqueles dois,
Aquele um
Negro amor de rendas brancas”
–
Em um mundo dominado pelo ódio, ambição, cobiça, posse e capital são corajosos aqueles que se rendem e assumem a paixão. O amor é avassalador e está para além da racionalidade e compreensão. É o agir. Toma conta dos corpos apaixonados. Um calor. Assume os riscos e nos coloca em risco. É agridoce. É eterno. É encantador.
Presente no livro Lição das Coisas (1962), o poema “O Padre, a Moça”, cujo trecho abre este texto, traz o mestre Carlos Drummond de Andrade narrando este amor impossível. A adaptação cinematográfica ficou por conta de Joaquim Pedro de Andrade (“Macunaíma”) e é cercado de polêmicas.
A LUTA CONTRA A CENSURA
Em 1966, o Brasil passava por um dos períodos mais turbulentos de sua história recente, a Ditadura Militar. Naquela época, eram poucos os filmes que conseguiam ver a luz do dia sem alguma intervenção direta do governo.
“O Padre e a Moça” não passou ileso pelas repressões dos militares e da Igreja: o drama protagonizado por Paulo José e Helena Ignez foi liberado para estrear nos cinemas com classificação indicativa para maiores de 18 anos pelo Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP), integrado ao Ministério da Justiça. Porém, reclamações chegaram ao órgão vindas de alas da Igreja Católica, levando a uma nova reavaliação.
Logo de cara, o primeiro censor a avaliar “O Padre e a Moça” foi um padre que avaliou o longa como “ofensivo à moral e uma exaltação do amor livre”. A classificação continuou para maiores de 18 anos, entretanto, com três cortes danosos ao entendimento da produção. O diretor resolveu negociar junto ao SCDP para uma solução, o que elevou classificação para 21 anos, mas, em uma versão sem cortes.
AMOR CONTRA JULGAMENTOS SOCIAIS
Aqui, Joaquim Pedro de Andrade busca falar de um amor impossível, mas também da miséria humana em suas diversas faces. Ora, imagine um sujeito que abdicou da carne e das coisas mundanas se apaixonar e ser correspondido por uma jovem moça que desconhece do mundo exterior. A situação se torna ainda mais dramática pela vida dela sempre ter sido naquela pequena vila em algum lugar de Minas Gerais e ser objeto de paixão e cobiça de Fortunato (Mário Lago), homem que a criou como filha, mas que tem o sentimento de posse por ela a pedindo em casamento.
Para além da questão social, Fortunato era um explorador de pedras preciosas e também da mão de obra dos garimpeiros. Há ainda a questão do julgamento de si e do outro: o padre, ao perceber-se envolvido por esta paixão, se questiona, ainda que silenciosamente, como um ceder aos encantos de Mariana? Era padre, afinal.
E os julgamentos da comunidade. Em uma sociedade que estava sob regime militar e regredindo, o ato do amor, entre esses dois, ofendia a moral e os bons costumes estabelecidos socialmente. Para escapar da perseguição, fogem para viver a paixão. Voltam e são perseguidos novamente. A cena final é uma catarse muito simbólica e impactante por conta de assumir os riscos de uma paixão fumegante.
AMAR COMO ATO POLÍTICO
O grande triunfo de Andrade foi construir uma relação nas entrelinhas até a explosão do ato final. O preto e branco casa perfeitamente com a condição desses dois amantes em estarem na obscuridade de uma vida em celibato ou condicionada a uma relação não consensual. Juntos, eles se descobrem assim como descobrem uma força até então que não sabiam que existia para encarar os obstáculos.
Destaque para a dupla Paulo José e Helena Ignez (o padre e a moça), duas forças poéticas da natureza explodindo em química e paixão. Os geniais Mário Lago e Fauzi Arap (Vitorino) também completam o elenco estrelar.
“[…] e na mão lá vai e a moça vai dentro dele, é a reza de padre”, a junção dos corpos apaixonados e luta por viver dessa paixão. Amar, certamente, não é para qualquer um e em períodos turbulentos, é um ato político.