Quem acompanha as notícias do cinema brasileiro, provavelmente deve ter sabido que Vazante, primeira direção solo de Daniela Thomas, parceira recorrente de Walter Salles, recebeu críticas duríssimas durante o último Festival de Brasília. Durante os relevantes debates, diversos críticos, artistas e pessoas sem ligação profissional com cinema expuseram as supostas contradições cometidas pelo filme, que fez escolhas anacrônicas, equivocadas na maneira de retratar os personagens negros.

A situação tornou-se ainda pior pela maneira como Thomas defendeu o filme. A sua fala dizendo que queria realizar uma denúncia contra a escravidão, e que o filme se posicionava como um manifesto contra o racismo, inflamou o que já estava suficientemente contraditório. Chegou até a ser chamada de “ativista do Leblon”.

À distância, sem assistir à película, era difícil se posicionar, claro. Mesmo que as reclamações fossem coerentes, entretanto, admito que me incomodava o tom agressivo da crítica à cineasta, afinal trata-se de um dos nomes mais importantes do cinema brasileiro desde a Retomada, diretora de um filme muito relevante para toda uma geração de realizadores, que é Terra Estrangeira (1996).

Depois de vê-lo, porém, fica difícil comprar o discurso da realizadora. Por melhor intenção que tenha tido, Vazante é, na melhor das hipóteses, desconectado com o momento político e social que vivemos.

A trama, que se passa em Minas Gerais em 1821, conta a história do tropeiro Antônio (Adriano Carvalho), que acabou de perder a esposa durante um trabalho de parto. Ele consegue arranjar outro casamento, dessa vez com a pré-adolescente Beatriz (Luana Nastas). A garota, por ser muito nova, praticamente não se relaciona com o marido, tendo contato maior com as crianças e jovens escravos, principalmente com o filho de uma escrava, da mesma faixa etária. Falar mais que isso, prejudicaria a relação com o filme.

Como esta breve sinopse sugere, a história é contada pelo ponto de vista dos brancos. Os personagens negros ali estão como acessórios destes, apenas para servirem de escada para o conflito principal do filme, que é o do homem branco dividido entre o luto e uma nova relação com a recém-esposa, e a moça jovem que ainda não possui maturidade para compreender a complexidade das relações a que se propõe.

Não há tensionamentos verdadeiros em relação às temáticas de classe e raça. O filme, na verdade, coloca essa questão na tela reafirmando a condição de escravizados dos negros, sem que eles possuam subjetividades bem definidas. Fica parecendo que a ideia de mostrá-los inferiorizados era inevitável, pois era assim que eles eram tratados na época. Este discurso, porém, é inaceitável, é claro.

Em entrevista, Thomas disse que acreditava que apenas a presença dos negros na tela, com um direcionamento na interpretação dos atores para que demonstrassem a força e personalidade destes personagens, já bastaria para que eles fossem retratados de uma maneira que demonstrasse algum tipo de empoderamento.

Talvez essa estratégia funcionasse até os anos 90, início dos anos 2000. Hoje, todavia, e felizmente, falar de questões envolvendo minorias, requer muita atenção e humildade por parte dos realizadores, senão são grandes as chances de acontecerem equívocos como este. A minoria em questão tem que ser ouvida, com representatividade suficiente para exercer um papel de referência na obra.

Os momentos em que os personagens negros arriscam algum tipo de protagonismo, surgem perigosamente reafirmando o status quo. O personagem de Fabrício Boliveira possui um fim que beira o inexplicável, e um dos escravos que se revolta e insubordina perante as atrocidades brancas, não possui nome, surge falando outro idioma, que não nos é traduzido. Uma manifestação que fica relegada a segundo plano, não sendo fundamental que se aprofunde o que ele diz, aparentemente.

Acredito que não seja intenção da realizadora colocar o negro como inferior. Ao mesmo tempo, a reafirmação de uma estética padrão, que coloca o branco como protagonista e o negro como um acessório que ocasionalmente tem uma voz que parece não ser o foco de nada, contradizem de maneira indiscutível toda e qualquer boa intenção. Principalmente quando ela surge dizendo-se defensora de uma causa que ela claramente não domina, ou pelo menos ainda permitiu-se uma série de desinformações.
Acontece, e é real.

E sim, o filme é arrebatador visualmente. Mas isso acaba agravando mais o seu discurso problemático. Claramente é uma obra que coloca a questão técnica, estética, preponderante em relação à temática, e a todos as fartas questões políticas que suscita. Num preto e branco austero e repleto de camadas, em que a profundidade de campo reduzida torna tudo ainda mais estetizado, a beleza de cada quadro torna bonito até o martírio vivido por aquelas pessoas, que por mais que sejam identificadas como seres humanos de carne e osso, parecem não ser consideradas interessantes o suficiente para possuir voz e decupagem que as coloquem em algum tipo de destaque.

A recepção elogiosa que o filme recebeu em Berlim representa bem uma análise que parcela da sociedade pode ter em relação à obra. Que Vazante é um filme diferenciado, muito bem filmado, que demonstra raríssima perícia técnica dos seus profissionais (incluindo as ótimas atuações do elenco), não restam dúvidas. Ao mesmo tempo, será que isso pode ser considerado suficiente para encobrir problemas de abordagem que interferem na vida real de pessoas que já são prejudicadas pelo mesmo sistema que se vê na obra em questão?

Fomos para outro caminho, em que cuidados são mais necessários. Este trem está passando, e não vai fazer retorno. Ou se aceita e embarca, ou permanece regredindo, por maior perícia de linguagem que se tenha.