De certa maneira, “Estrelas além do tempo” (Hidden Figures, 2016) traz uma marca importante ao tipo de filme que comumente se atrela aos gêneros, formatos e narrativas com maiores chances em premiações populares da indústria de cinema norte-americana como o Oscar. Por um lado, ele é um filme de época, que conta uma história verídica pouco conhecida até então, trazendo uma trama de superação emocionante. Por outro lado, essas características tão batidas a quem acompanha as preferências mais tradicionais dos votantes da premiação são delicadamente reconfiguradas no longa de Theodore Melfi, trazendo não apenas frescor a essa “cota” do Oscar, mas indo muito além do que isso representa à premiação.

O duplo jogo de familiaridade e ressignificação é uma de suas marcas mais sutis. Tomemos por exemplo a direção de fotografia do longa, com sua escolha por cores pasteis, levemente dessaturadas e tendendo aos marrons e amarelos, com enquadramentos e movimentos de câmera usuais, sem grande inventividade. Aliadas a uma reconstituição de época cuidadosa e à montagem que segue a mesma linha de simplicidade e fluidez, “Estrelas além do tempo” dialoga com outros bons longas americanos com tramas que se passam em meados do século XX, como “Forrest Gump – O contador de histórias” (Forrest Gump, 1994) ou “Um sonho de liberdade” (The Shawshank Redemption, 1994).

No entanto, a sacada (e o frescor) de “Estrelas além do tempo” reside em utilizar códigos familiares para focar na história de três cientistas negras, Katherine G. Johnson (Taraji P. Henson), Dorothy Vaughan (Octavia Spencer) e Mary Jackson (Janelle Monáe). Cada uma a sua maneira, elas contribuíram não só para a corrida espacial da Nasa como também para a quebra de preconceitos contra negros e mulheres dentro e fora da comunidade científica. A narrativa real dessas profissionais foi, por muito tempo, invisibilizada, tal como normalmente as mulheres na ciência o são, de forma que a trama de “Estrelas além do tempo” é, por si só, algo de novo no front dos filmes de aclamação popular.

É interessante perceber que a direção de Melfi e o roteiro dele e da praticamente iniciante Allison Schroeder toma uma série de cuidados que evitam que o filme descambe para algum tipo de lição moral sobre racismo e representatividade que ignore a potência da linguagem cinematográfica para abordar esses e quaisquer outros assuntos. Pelo contrário, a trama se desenrola de maneira que podemos realmente nos identificar, torcer, rir e chorar com a humanidade trazida ao trio protagonista, compreendendo o que foi a segregação racial no cotidiano, para além das tragédias que ela ocasionou, como já vimos em filmes como “Selma – Uma luta pela igualdade” (Selma, 2014), “Tempo de matar” (A time to kill, 1996), dentre outros. Não obstante, o roteiro se desenvolve de forma a criar um real suspense acerca da corrida espacial, lembrando muito o ritmo narrativo de “Apollo 13 – do desastre ao triunfo” (Apollo 13, 1995), especialmente quando foca no ambiente de trabalho direto de Katherine.

Protagonistas e coadjuvantes

“Estrelas além do tempo” também sai vitorioso quando se trata das armadilhas que filmes que abordam a segregação racial nos EUA em meados do século XX podem trazer. Quando pensamos, por exemplo, em “Histórias cruzadas” (The Help, 2011), o protagonismo branco numa história cujos efeitos afetam majoritariamente os negros pode gerar incômodo (e com razão). Já no longa de Melfi, os personagens brancos são de fato coadjuvantes, com a Vivian Mitchell de Kirsten Dunst e o Paul Stafford de Jim Parsons chegando a uma representação quase caricata para os padrões de racismo velado de hoje (embora case bem com a naturalização do mesmo na época). Seriam esses dois personagens propositadamente uma espécie de resposta às infindáveis representações de negros como estereótipos?

Mais interessante ainda é perceber como um papel secundário importante, o de Kevin Costner como Al Harrison, também não toma o protagonismo das reais estrelas do filme. Há pontos que chamam a atenção na representação dele enquanto dúbio aliado de Katherine: como homem e chefe, ele está alheio ao preconceito que ela sofre quando não pode usar o banheiro do prédio onde trabalha por ser negra, ou por ter “ganhado” uma cafeteira separada da dos demais colegas brancos, ou de como Katherine tem o desafio de equilibrar suas ambições profissionais com a criação dos filhos e a vida pessoal.

Os privilégios intrínsecos do homem branco não o permite ver e muito menos questionar essa realidade, e apenas quando as limitações externas impostas à Katherine prejudicam o andamento do trabalho que ele lidera é que isso passa a incomodá-lo. Isso gera um ponto de reflexão pouco visto e, por isso mesmo, importante, fazendo o espectador refletir sobre o quanto a ciência poderia produzir se barreiras socialmente impostas (e, não raro, sem sentido) não impedissem o potencial de mentes brilhantes. Ainda que o roteiro tenha adicionado um apoio a mais de Al Harrison para com Katherine, que não existiu nesses termos na história real, sua apresentação no longa ainda assim subverte a figura do white savior tal como a vemos em filmes como “Um Sonho Possível” (The Blind Side, 2009). Resultado: Costner ganha um papel no qual ele pode brilhar como coadjuvante sem que isso eclipse as reais protagonistas.

Mulher e raça

Enquanto narrativa fílmica, as vozes dessas mulheres não são silenciadas em detrimento do olhar masculino de seu diretor, ainda que as personagens, dentro de seus contextos, sejam a todo tempo desafiadas por questões de gênero e raça. É o que permite que possamos então falar sobre o trabalho das atrizes Taraji P. Henson, Octavia Spencer e Janelle Monáe. O trio transmite dignidade às personagens, sem nunca arriscar delineá-las como “Mary Sues” com quem o espectador não pode se identificar e torcer.

Não apenas às mulheres de cor, mas a todas as mulheres, tem-se em “Estrelas além do tempo” um retrato digno de cientistas com A de gênero, mostrando mulheres determinadas, inteligentes, mas não raro preocupadas com suas famílias, atentas ao que acontece em sua comunidade, não descambando também para outro problema comum na representação de mulheres “fortes” em filmes e séries: o uso de atributos (visual, trejeitos, sexualidade etc.) socialmente tidos como masculinos para justificar a força e determinação delas.

Nesse sentido, a escolha e direção de elenco é um trunfo em “Estrelas além do tempo”: Taraji é multifacetada o suficiente para mostrar uma mulher que atura a babaquice dos colegas de trabalho, concentra-se nos cálculos de geometria analítica, debate, revisa e cria resultados, cuida dos filhos, conversa sobre possíveis pretendentes, e, no final das contas, traz tanto esse componente transformador de sua atuação no trabalho quanto outros pontos tidos como tradicionais à mulher, gerando novamente a tal da familiaridade com o grande público, e sem fugir à história original da personagem.

Não obstante, as diferenças de personalidade de cada uma delas é facilmente identificável: Dorothy Vaughan, um pouco mais velha, cria sua estratégia para não ser colocada de escanteio pela chegada dos computadores à Nasa silenciosamente, sendo engenhosa e transgredindo sempre discretamente as regras que a impedem de ter sucesso. Uma cena em especial, dela com Kirsten Dunst conversando no banheiro, sintetiza essa característica. Já Mary Jackson é jovem, bela, atrevida e de língua afiada, mas focada em atingir as vias legais e transformar o sistema para galgar degraus no trabalho e se tornar uma engenheira da Nasa. Ser não apenas uma coisa (cientista), mas várias (jovens ou maduras, casadas ou namoradeiras, divertidas ou sérias), pode parecer algo menor, mas quando se põe em perspectiva com o que a grande indústria de cinema apresenta como opção para atrizes, o trabalho do trio mostra-se longe do óbvio.

O amor dessas mulheres ao trabalho técnico-científico que desenvolvem é algo belo e não muito comum de ser ver no cinema. Quando paramos para pensar em pesquisas recentes que mostram como meninas são desestimuladas a acreditar em seu potencial ainda na primeira infância, aliado a outras pesquisas que mostram como mulheres da comunidade científica são muitas vezes freadas em suas trajetórias por conta da criação de filhos, além de serem mais negativamente avaliadas quando os avaliadores de trabalhos sabem o nome e o sexo de quem avaliam, podemos ver que a escolha de Melfi por uma narrativa simples e envolvente presta um serviço social extra no filme.

Para completar, o filme ainda mostra os diferentes níveis de dificuldades que as heroínas enfrentaram ao mostrar que os desafios iam além da segregação racial. Mesmo dentro de seus próprios núcleos comunitários, elas sofreram preconceito por não optarem pela dedicação exclusiva a casa e aos filhos. Porém, Katherine só dá uma chance ao pretendente quando este dá sinais de que respeitará seu trabalho; Mary tem um parceiro que tenta criticar a busca por melhores cargos na Nasa enquanto, ironicamente, apoia as ações revolucionárias do Dr. Martin Luther King, e que só permanece na história na medida em que muda de posicionamento. Essas tensões de gênero e raça são apresentadas, tal como os demais tópicos do longa, de forma a ser palpável ao espectador médio, propositadamente sem apelar a artifícios mais estilizados e distantes do grande público.

Pelo belo resgate de uma importante página da história, pela representação tanto digna quanto capaz de entreter e pelo uso inteligente de uma série de elementos que, de outra forma, poderiam fazer desse um filme menor, “Estrelas além do tempo” vale a conferida e uma reflexão sobre. Infiltrar-se na corrida do Oscar com sua aparente cara de “drama pipoca politicamente correto e para toda a família” é também uma estratégia mais que válida para uma indústria cinematográfica que muda, mas lentamente e não tanto assim.