Leni Riefenstahl é uma diretora intrigante: por um lado, ela é a responsável por “O Triunfo da Vontade” (Triumph des Willens, 1935), o filme de propaganda nazista mais conhecido da história do cinema, o que, por si só, já a colocaria no hall de realizadores a não merecer honrarias e elogios; por outro lado, as narrativas e imagens de seus filmes são absurdamente bem construídas, como bem percebemos no próprio “O triunfo da vontade” ou em “Olympia” (idem, 1938) – outro filme de propaganda, dessa vez, sobre as Olimpíadas na Alemanha nazista em 1936 –, para só citar dois exemplos.  

Vendo-a no documentário “The WonderfulHorrible Life of Leni Riefenstahl” (Die Macht der Bilder: Leni Riefenstahl, 1993), tem-se a plena impressão de que Leni é uma mistura de frieza, teimosia e determinação sem limites quando o assunto é dirigir filmes.  Oficialmente, ela nunca se associou ao partido nazista, no sentido de pertencer ao partido, mas registros da época para além de seus filmes mostram uma grande sintonia entre o que essa ideologia pontuava como o “ariano ideal” e, em termos imagéticos, quais seriam os “valores germânicos” a serem preservados no Reich.  

É aí que entra “A luz azul” (Das blaue Licht, 1932), filme dirigido e protagonizado por Leni antes de ser a garota dos olhos da propaganda nazista. Co-dirigido pelo judeu Béla Balázs e com roteiro (não creditado) do judeu Carl Mayer, o longa traz, ironicamente, diversos elementos que viriam a ser o cerne da estética nazista. Mais irônico ainda é perceber como a representação feminina nesse filme é pontuada de elementos hoje tidos como “modernos”: há uma personagem complexificada tanto em sua psique quanto em relação a como a câmera se endereça a ela; uma clara reversão da importância do relacionamento romântico entre a protagonista e o personagem masculino principal; e uma curiosa atenção aos aspectos de resistência física da mulher. São esses pontos que pretendo abordar aqui.  

Mas, antes de tudo, vale uma pequena sinopse da obra para localizar o leitor: em “A luz azul”, Leni é Junta, uma mulher considerada a bruxa de um vilarejo nos Alpes, numa região entre a Suíça e a Itália. Ela mora afastada dos demais, nas montanhas, vivendo uma vida livre e em harmonia com a natureza, o que a faz ser uma exímia escaladora – um elemento principal no filme, enquadrado no subgênero cinematográfico alemão dos “filmes de montanha”, populares na época. Por sua vez, as montanhas da região emitem um brilho hipnotizante nas noites de lua cheia, gerando a luz azul que do título. Os moradores do vilarejo acreditam haver uma relação entre essa luz atraente e Junta, o que faz com que eles a maltratem sempre que ela eventualmente precisa ir à vila. Porém, um viajante chamado Vigo (Mathias Wieman) vai contra esse pensamento e se aproxima de Junta. 

Visualmente, o filme é arrebatador: o brilho dos cristais da montanha é incandescente e dá um ar onírico a todas as cenas nos quais eles são o destaque. Já aí se percebe o apuro de Riefenstahl com a direção de fotografia, uma das marcas de seu trabalho. A relação simbólica entre essas imagens e o fato de Junta ser considerada uma bruxa também dialogam um pouco com os contos de fada, uma vez que o longa é baseado numa lenda alemã. A bruxa, porém, nada tem de má, sendo reimaginada por Riefenstahl como uma outsider, marginalizada injustamente pela sociedade da qual faz parte.

Nesse sentido, é emblemático que Junta pouco se comunique com os demais. Na condição de estranha e mulher, ela é duplamente vilanizada pelos outros, o que é bem exposto quando ela é enxotada, perseguida e agredida por eles, apesar de ser alvo de assédio em alguns momentos, o que fica implícito na montagem. Ampliando-se a metáfora dessa dinâmica, podemos traçar paralelos com várias situações ainda atuais, nas quais uma mulher é rejeitada socialmente, mas cobiçada “por debaixo dos panos”. A relação Junta/mal e montanha/tentação ganha uma conotação sexual com essas entrelinhas.

A representação dos homens em “A luz azul” é igualmente interessante. O olhar deles é brutal, apresentados em repetidos contre plongéee, inferiorizando a figura feminina de Junta, mas nos colocando na perspectiva de visão dela. Eles são flat, apenas assustadores, como que resultados do ambiente reprimido em que vivem. A apatia desses homens só é abalada pelo impulso à violência, especialmente contra Junta, sendo esses os únicos momentos em que os vemos expressar emoções de maneira clara (com exceção do que acontece ao final da trama). Essa representação dos homens no filme pode apontar para a possível interpretação de que o fascínio deles em perseguir a luz azul é também um fascínio com a própria morte enquanto escapatória ao ambiente de opressão.

Outro ponto que complexifica Junta é a liberdade da qual ela usufrui em seu contato com a natureza. Afastada do vilarejo, ela é saudável, forte e escala melhor que muitos dos homens da região – o que fica claro quando vemos, no decorrer da trama, que muitos morrem tentando ir atrás da luz azul, enquanto que ela sobe corriqueiramente ao ponto da montanha onde se encontram os cristais que refletem tal luz na lua cheia. Aliás, curioso que os homens destacam essa habilidade como sendo resultado de sua bruxaria, ou seja, eles preferem acreditar no caráter sobrenatural da personagem feminina que admitir que ela possui uma habilidade humana superior a dos personagens do sexo masculino.

A liberdade e estranheza de Junta também são expostas no contraponto de sua residência, que é mais rústica e sem elementos que remetam a uma fé religiosa. É o contrário das casas e hotel que vemos no resto do filme, os quais apresentam atmosfera austera e cristã. Dessa maneira, Junta carrega consigo algo de mais essencial, quase selvagem, como se representasse o que seria o povo germânico antes das influências de outras culturas, se levarmos em conta que o filme se passa numa região de fronteira e o próprio cristianismo não é autóctone ali. 

Curiosamente, o espírito e físico saudável, elementar e digno de Junta trava uma relação com o que viria a ser disseminado como ideal de mulher na sociedade nazista. Para tanto, vale uma contextualização, que também podemos encontrar no universo do audiovisual. No terceiro episódio da série da BBC “Nazi Secret Files” (2015), intitulado “Nazi Cavemen”, vemos a tentativa dos nazistas de “desvendar” (por desvendar, entenda-se “inventar”) uma origem especial pré-histórica ao homem alemão ariano e puro, o qual hipoteticamente teria dominado e exterminado os demais humanoides da região no passado. Já no episódio “Nazi on drugs”, a obsessão dos nazistas com a expressão de habilidades físicas fantásticas também se faz presente nesse ideário. 

Por sua vez, no documentário “Hitler – Eine Karriere” (1977, Joachim Fest e Christian Herrendoerfer), observa-se que essas expressões de força de um corpo notável também se aplicavam ao papel da mulher na sociedade alemã nazista. Elas deveriam igualmente seguir um padrão de beleza e condicionamento físico, além de moralmente serem tão responsáveis pela disseminação da ideologia nazista quando os homens, sendo também essencial o papel de mãe da prole ariana que dominaria a Terra. Com exceção deste último papel, a Junta de Riefenstahl é quase um protótipo dessa mulher ariana: forte, bela, capaz de prover e livre de influências culturais que não as genuinamente locais.

Aproximando-se do final do filme, um último elemento chama atenção: a reversão da importância do relacionamento romântico. Vigo é um homem culto vindo da cidade e que se apaixona por Junta. A relação entre eles se aprofunda, mas a interrupção desse vínculo é indiretamente causada por ele: ao descobrir que cristais eram a fonte da luz azul, ele informa aos homens do vilarejo, que iniciam a extração das pedras e passam a viver um período de prosperidade. Junta, porém, abraça a morte por perder seu antes inalcançável santuário de tranquilidade, um local sem homens, para onde ela, talvez sobre influência do sobrenatural, dirigia-se nas noites de lua cheia.

Assim, quebra-se o andamento de uma narrativa tradicional – na qual eles se apaixonariam e viveriam felizes para sempre ou morreriam um pelo outro. A figura masculina não mais dita o destino da feminina a partir daí, reconfigurando-se: o interesse aparte do emocional (no caso, a cobiça pelos cristais) se sobressai, e isso é o que transforma o futuro dos personagens. No caso de Vigo, cresce a empolgação em mudar a vida do vilarejo; para Junta, cresce a decepção de antever o fim da luz azul. Destaca-se o caráter prático e racional do homem ao priorizar um interesse financeiro, pois, de certa maneira, é uma “atitude esperada” ao seu sexo, hipoteticamente menos afeito ao sentimentalismo. 

Junta, no entanto, está longe de ser uma donzela a morrer de amor. A dor dela tem menos a ver com os sentimentos por Vigo e mais a ver com a mudança em sua relação com a natureza e, metaforicamente, consigo mesma, já que era entre os cristais que a vemos mais tranquila, longe do julgamento da vila. É interessante frisar que, apesar de tudo, ela não parece guardar mágoa dos que tentaram machuca-la, tampouco tem interesse em vingança. Os atributos de fragilidade e rancor como “atitude esperada” ao seu sexo não ocorrem.

Com tudo isso, “A luz azul” abre a intrigante filmografia de Leni Riefenstahl. Ele permanece inspirador ao reverter sutilmente o papel de sua protagonista mulher e quebrar expectativas para essa representação, ao passo que permite uma fantasmagórica premonição do ideal nazista em termos estéticos. Como a luz dos cristais, ele fascina, mas também assusta.