Sabe aquelas histórias que martelam nas nossas cabeças durante semanas? Nós nos remoemos e tentamos achar saídas, significados, razões e, ao final, só percebemos o quanto elas nos envolvem, e, aceitá-las é aquilo que se pode fazer para encarar sua magnitude e continuar imerso nessa história, de forma positiva.
Quando tratamos de términos, essas histórias podem se preservar guardadas durante anos, adormecidas como sentimentos esquecidos, lembranças que permanecem dentro de nós, e mesmo que não percebamos, influenciam em toda regência que damos às nossas vidas. Até o momento em que o gatilho é disparado, e tudo que esteve oculto, ou tentou se manter oculto, transborda e nos leva de volta a essas lembranças e toda a sentimentalidade que elas ainda contém. Términos não são simples e nem duram o tempo de uma lavagem de cabelo. Cicatrizar feridas leva tempo. E esse tempo nem sempre é cronometrado ou transcorre cronologicamente como a volta da terra ao redor do sol.
É preciso falar de términos, fechamentos de ciclo, mesmo que não represente uma tarefa fácil, muitas vezes por não sabermos lidar da melhor maneira possível e nem a conhecermos. Mas Tom Ford assumiu as rédeas desse exercício e mostrou que é possível fazer uma boa história sobre conclusão, términos e tudo o que os envolve.
No início da projeção, somos apresentados a Susan Morrow (Amy Adams) uma mulher realizada profissionalmente, casada com aquele tipo de homem que conquista toda sogra com apenas um sorriso de bom moço (Armie Hammer), mesmo assim a empresária se mostra frustrada e carregada de arrependimentos, mesmo que eles não estejam tão explícitos. Há um clima no ar, orquestrado pelo ambiente sóbrio, as cores neutras, a trilha sonora baixa quase imperceptível harmonizando com o clima de incompletude e melancolia que transparece o casal Morrow. A distância parece ser a única coisa que os une e enquanto nos indagamos o porquê de ter chegado àquela circunstância e até mesmo o que está acontecendo, Susan é presenteada com o manuscrito do livro de seu ex-marido intitulado “Animais Noturnos”, que parece ser o gatilho para evocar todas as lembranças que ela havia deixado adormecida nos últimos 19 anos.
Só este pequeno trecho do filme, já levanta muitas questões. Como se mede a distância? A partir de que momento o passado para de nos incomodar? Quanto tempo é necessário para que o arrependimento beire ao esquecimento? Enquanto essas perguntas beiram ao subconsciente, acompanhamos a vida de Susan e especulamos os atos de seu esposo e as intenções do ex-esposo. E de repente, não estamos mais na história dela, mas entramos em Animais Noturnos, o livro escrito por Edward (Jake Gyllenhaal) e dedicado a Susan.
O clima de tensão só aumenta. Abel Korzeniowski foi ágil em criar uma trilha sonora que não deixa em momento algum o sentimento de incômodo e ansiedade diminuir. Você prevê que algo está acontecendo, algo irá acontecer e nada é tão inocente quanto possa transparecer. Aliás, nada soa inocente. Cada escolha de cenografia, figurino (uma nobre especialidade de Ford), cores, corte de cabelo e elenco, tudo ressoa a condução magistral de Tom Ford, que já apontava sinais de sua excelência em O Direito de Amar, mas que aqui, grita silenciosamente, dando contornos memoráveis a obra. Pensar na direção de Animais Noturnos é retratar como cada detalhe é importante na construção cinematográfica. Korzeniowski, por exemplo, nomeia sua trilha sonora de acordo com cada sentimento levantado pelos seus acordes, que não se distanciam das temáticas que o filme expõe.
Construído a partir de três tramas paralelas, a película passeia entre a história de Susan, o livro de Edward e os flashbacks do casamento de Susan e Edward. De forma sagaz, a montagem precisa e fluida não confunde nossas mentes, como geralmente este tipo de narrativa tende a fazê-lo, mas acaba por deixar pistas das perguntas iniciadas no início da projeção, ao mesmo tempo em que construímos a Susan do presente, Edward e Susan e observamos atentos e agonizantes ao desenrolar do livro.
É válido ressaltar que embora todos os incidentes e personagens conduzam para conclusões a cerca de Susan, é Edward o grande condutor da história. Existe uma hora certa para se vingar? E qual a melhor maneira de fazê-lo? A impressão que transborda é que ele esteve esperando o melhor momento para dar voz a sua pessoa esquecida e ao seu modo de contar a história, por isso utilizou um artifício que soa como terapia, emprego e, principalmente, como vingança. Talvez seja por isso que a visão que Susan tem de Tony, personagem do livro, não soe tão estranho aos flashbacks que ela tem do ex-esposo, mesmo que as diferenças estejam ali exorbitantes.
É interessante observar o corpo do artista. E não falo no sentindo libidinoso, mas o quanto cada personagem necessita de um corpo diferente e como a preparação do elenco nesta obra, deixa isso evidente. Gyllenhaal consegue dar vida a personagens distintos, sem que isso cause estranhamento ou confusão. São simplesmente pessoas diferentes. Corpos diferentes. Idades diferentes. E o mesmo artista. É impressionante. Embora Adams mostre uma faceta diferente de seus últimos personagens, deixando toda carga dramática presa a frieza e distanciamento de Susan, são os olhos meigos e a ausência e presença de barba de Gyllenhaal o grande nome da película.
Nisto, é preciso lembrar que conhecemos o livro de Edward sobre a perspectiva de Susan. Todos os intervalos decorridos na história também existem por conta dela. Desta forma, podemos nos indagar por que a personagem central do livro traz o rosto de seu ex-marido e a esposa traz traços tão semelhantes aos seus, mesmo que não seja a mesma atriz. O livro representa a projeção de algum momento da história do autor e a quem foi dedicado, para a leitora, que se enxerga não admitindo sua auto representatividade. Por isso, a história do livro forme tantos questionamentos sobre os envolvidos na “realidade” da narrativa apresentada.
E afinal de contas, quem é Edward e por que as decisões de Susan a guiaram para a distância e melancolia crescentes dentro dela? Este é o poder de Animais Noturnos, nos fazer indagar mesmo após semanas sobre a obra e simultaneamente evocar sentimentos e reações difíceis de serem descritas que acabam por nos convidar a refletir e tentar ver o mundo sob a perspectiva das ações finais de Susan, Edward e Tony, personagem central do livro. Afinal, Tom Ford conseguiu criar um filme que domina o imaginário representativo das probabilidades para serem discutidas e lembradas.
Crítica perfeita! Há tempos não via o cineset dá uma nota tão alta para um filme. Animais noturnos merece!