Acompanhando “As Maravilhas”, de Alice Rohrwacher, lembrei-me várias vezes do ótimo “Abril Despedaçado” (2002), de Walter Salles. Mais precisamente de uma entrevista de Rodrigo Santoro falando sobre o processo da composição dos personagens do filme, em que o elenco se mudou, algumas semanas antes das gravações, para a casa na qual a trama se desenvolveria, e ali estabeleceram uma relação radicalmente naturalista, vivendo dos produtos que eles mesmo produziam, sendo responsáveis pelo funcionamento das máquinas, da alimentação dos animais, da limpeza do local, etc. Santoro lembrava que este processo foi importante para que a relação entre os atores fosse ainda mais orgânica, sua sincronia de pensamento estava muito avançada.

Certamente tal atividade também aconteceu com “As Maravilhas”, pois a excepcional naturalidade da mise-en-scène estabelecida por Rohrwacher é o maior mérito deste agradável filme, que ainda tem como trunfo uma trama meio esquisita, personagens desajustados, fazendo com que a soma desses elementos transforme o longa em um filme bastante diferente do que comumente acompanhamos, e por isso já vale a visita.

Gelsomina (Alexandra Lungu) é a irmã mais velha de 4 meninas, e mora numa espécie de fazenda com o seu pai (Sam Louwyck), mãe e tia, onde produzem mel para o seu sustento. A garota, por ser a mais velha, é a que mantém contato mais próximo com o pai, e com as tarefas diárias, funcionando quase como uma gerente de todas as operações. Certo dia, Gelsomina encontra a equipe de um programa de televisão, o “País das Maravilhas”, apresentado pela estranha Milly Catena (Monica Bellucci), que funciona como um reality show entre famílias produtoras. Tentando espantar um pouco a tristeza que a dura rotina de trabalhos impõe, a garota busca convencer os seus pais a participarem do programa.

As Maravilhas, de Alice Rohrwacher

Conduzidos pelo sensível e brilhante trabalho de Lungu, acompanhamos o filme como alguém que vai visitar a casa de um amigo do amigo, em que as crianças estão brincando no chão da sala, derrubando móveis, gritando, o pai está só de cueca, a mãe e a tia fofocam sobre alguma coisa, tudo está uma bagunça, todos falam um por cima do outro, parece que a qualquer momento irão brigar feio, mas não, de alguma maneira eles escondem uma surpreendente harmonia por trás daquela sensação de bagunça.

Mas não pra Gelsomina. A adolescente é a figura mais séria, introspectiva da trama. As suas irmãs, por serem menores, não contribuem nas tarefas de maneira efetiva, e por ela ser a mais velha, funciona quase como uma segunda mãe para todas elas, além de ser a pessoa que mais mantém contato com o seu intenso pai, um homem que parece estar ligado numa tomada, sempre apressado, com inúmeros afazeres, que não parece ser capaz de respirar por um segundo, e não gritar a todo momento, seja com a sua família, seja com os caçadores que rondam a sua propriedade.

Isso tira um pouco da sua personalidade. No fundo, não sabemos muito bem a verdadeira personalidade de Gelsomina, nem ela mesma. Por ser colocada numa função de grande responsabilidade desde muito cedo, a garota nunca pôde ser criança, sempre teve que tomar uma série de atitudes sérias, para servir de exemplo as irmãs, além de pegar pesado num serviço difícil, acordando cedo. Ela vive numa grande pressão, e mesmo quando se solta, como na cena em que canta e dança com sua irmã, parece presa, não consegue se libertar totalmente, parece achar que é errado ter um momento de diversão em que não se pensa no futuro, mas apenas no momento. E a total falta de capacidade dos seus pais em identificar que a garota é infeliz torna tudo ainda mais difícil, como na cena em que o pai dá de presente um camelo a filha, certo de que ela adoraria o presente.

A chegada de Martin, um garoto alemão tímido, que fica na casa da família por fazer parte de um programa de reabilitação, insere elementos curiosos ao filme. Por um lado aquilo desperta nas meninas uma curiosidade, pois elas quase não mantinham contato com garotos da sua idade, mas principalmente mostra como o pai fica feliz com o acontecimento, ele finalmente teve a chance de ter “um filho”. Tendo claramente um pensamento machista e bruto, morar em uma casa com mais 6 mulheres não fazia parte dos seus planos mais íntimos, e ter um garoto mais velho para liderar os trabalhos com as abelhas sempre foi o ideal.

Contando com uma sequência final ambígua e muito bem pensada, conhecemos um lado ainda não visto de Gelsomina, que de uma maneira estranha está completamente de acordo com o que foi mostrado anteriormente. E quando ela é aceita de volta ao seio da família, numa inteligente metáfora, de que sempre haverá espaço para ela, constatamos a inteligência de Rohrwacher, que poderia ter pensado numa solução mais otimista, mas preferiu a verdade.

E a verdade é que talvez Gelsomina nunca tenha pensado que poderia ter uma vida diferente da que tem, e que por conta disso, se sente feliz em estar de volta. E a vida tem disso: a gente acha que é feliz, mas no fundo apenas desconhece outra maneira de viver.