Último trabalho daquele que foi considerado o maior cineasta vivo, alguns anos depois de ser homenageado com a Palma das Palmas no Festival de Cannes, “Saraband” é o adeus definitivo de Ingmar Bergman do cinema. Erroneamente entendido como a continuação de “Cenas de um Casamento”, mas que para o diretor era apenas uma conexão de personagens que ele conhecia bem. Inspirado na histórica dança que dá nome ao título, o drama se conecta não somente com uma das obras-primas do diretor, mas com toda sua filmografia.

Ao rever velhas fotografias, Marianne (Liv Ullmann) tem o ímpeto de quebrar o silêncio mantido com seu antigo marido Johan (Erland Josephson). Depois de trinta anos sem nenhum contato, a advogada visita a casa de verão do professor sem saber ao certo sua intenção ali. Ao encontrar a monótona vida do velho homem atrapalhada pelos conflitos com o filho Henrik, que lida com a recente morte da esposa e mantém uma relação abusiva e incestuosa com a talentosa filha Karin, Marianne acaba envolvida no trágico drama da família.

Inspirado por Bach e seguindo a estrutura da dança sarabanda, sempre dançada em casal, a narrativa composta por dez cenas faz em cada uma delas o encontro entre apenas dois personagens. A cadência conscientemente seguida por Bergman é mais uma prova da influência da musicalidade nas suas obras, a harmonia ditando o enredo dos seus trabalhos. Henrik e Karin são dois violoncelistas apaixonados pelo instrumento, aquele projeta na filha a realização das suas aspirações, enquanto ela se frustra com a impossibilidade da própria vontade.

O conflito das expectativas dos pais com os filhos e o confronto entre o que aqueles esperam e o que esses desejam contorna todo roteiro. A caótica relação entre pais e filhos, constantemente destrutiva, é exposta na ausência das filhas de Johan e Marianne, nele e seu filho Henrik e, por sua vez, esse com a filha Karin. O choque entre gerações, tema presente em toda filmografia do diretor, especialmente nos seus primeiros filmes, ecoa mais uma vez. Com uma visão bem pessimista, Bergman expõe esses vínculos como os responsáveis pela miséria interna dos envolvidos. Uma geração marcando a outra de forma profunda e quase mortal.

Contudo, além desse plano e diferente do que possa indicar, o filme não é sobre o reencontro de Marianne e Johan ou ainda a oposição entre os desejos de Henrik para o futuro da filha e o que ela realmente deseja, mas essencialmente sobre o encontro de Marianne com algo que ela ainda não conhecia. Depois de testemunhar o desprezo na vida de Johan, Marianne desperta para a ausência no elo com a própria descendência, com sua extensão no mundo.

Na imagem de Liv Ullmann revivendo nas fotografias o seu passado, é Bergman memorando a própria vida. “Saraband” talvez não possuía a grandeza das obras-primas do cineasta, tampouco seja parte da extensa seleção dos seus melhores filmes, mas é uma despedida coerente com quem foi o mestre sueco e o cinema criado por ele. 

O LEGADO DE BERGMAN

Falar da contribuição de Bergman para a sétima arte é quase sempre cair em clichês. Dono de uma carreira longa e prolífica, o sueco não apenas redesenhou o cinema escandinávo, como influenciou e ajudou a ditar a história do cinema mundial. Do seu universo particular, Bergman fez sua obra. Poucos falaram tão bem da complexidade humana como ele.  

A total falta de pudor em expurgar seus demônios, desnudar suas relações e expor suas visões permitiram o cineasta expressar com uma linguagem única e profunda temas universais a partir das próprias experiências. Muito além dos dilemas existenciais, sua marca registrada,  a imaginação foi o principal elemento do universo criado por Bergman e do qual ele nos permitiu fazer parte.

Do seu cinema, ele escreveu a sua biografia e eternizou o seu nome.