Contar histórias reais no cinema é sempre um desafio. Como não deixar de fora episódio A ou B, ou como condensar episódios C, D e E em uma película de duas horas? Pois é, e quando se fala de cinema nacional, esse tem sido o calcanhar de aquiles de muitas produções do mainstream. Se o personagem é um ídolo, então, se faz a necessidade de levar às telas um filme laudatório, que muitas vezes omite os tropeços que fazem do protagonista um reles mortal. Por isso, é digno de nota que um filme como “Bingo – O Rei das Manhãs” seja uma produção inventiva e que não se galga apenas na (grande) atuação de seu ator principal, a exemplo de outros títulos como “Elis”, “Cazuza”, e, justiça seja feita, boa parte dos dramas hollywoodianos/britânicos que encontram espaço mundo afora. Mas, mais que isso: a estreia de Daniel Rezende excele ao contar uma história que não se perde em suas (muitas) referências pop, mesmo que, muitas vezes, empolgue justamente por conta delas.

“Bingo” tem a vantagem de poder se camuflar em uma história apenas “inspirada” em fatos, verdade – o filme é baseado na vida de Arlindo Barreto, um dos atores que viveu o palhaço Bozo, apresentador de um programa de TV politicamente incorreto e astro das manhãs do SBT (Silvio Santos e seu tino pra esse tipo de coisa…). Por direitos autorais – Bozo é um produto internacional, cunhado na TV norte-americana -, o roteirista Luiz Bolognesi mudou os nomes dos protagonistas (até mesmo de Arlindo, que vira Augusto) e deu outros rumos à narrativa.

É dessa liberdade artística que vem um dos maiores méritos do filme: não há aquele excesso de personagens na intenção de fazer o espectador virar e falar ‘OLHA O SILVIO SANTOS’ (o Homem do Baú não é sequer mencionado na película). As referências são econômicas – uma Xuxa (ou melhor, Lulu) que aparece de relance, uma Tainá Muller idêntica à Lídia Brondi (a estrela de novelas mais famosa dos anos 1980)… A exceção fica por conta da hoje diva da internet Gretchen, a única a ter seu nome real preservado.


Túnel do tempo

Ainda assim, quem cresceu ou viveu a década de 1980 embarca em uma viagem no túnel do tempo desde o primeiro minuto, quando o filme “saúda” o espectador com uma série de imagens emblemáticas daquele tempo.

A trilha sonora é um elemento à parte, e reúne o melhor e o pior daquela década, mas sem parecer, como diria a Lully de Verdade, um “bingo (!) da referência”. Portanto, quando toca Roupa Nova com uma cena de novela ao fundo, ou quando Echo and The Bunnymen embala a linda cena em que Augusto e o filho (o talentoso Cauã Martins) vivem suas catarses pessoais, a música e a imagem se complementam. Ainda há canções de Metrô (‘e no balanço das horas, tudo pode mudar’, quase que uma premonição), Tokyo (‘eu não aguento, eles querem me controlar’) e Dr. Silvana – esta última, uma clara menção às canções de letras absurdas que eram cantadas a plenos pulmões pelas crianças inocentes dos anos 1980 -e dos 1990 também, né, Mamonas Assassinas?

Quem acordava cedo para ver o Bozo chegar “trazendo alegria pra você e o vovô” vai rir ao ver uma pseudo-Vovó Mafalda e as brincadeiras cheias de duplo sentido que o palhaço inventava na hora, para desespero da produção da TVS (antigo nome do SBT e que aqui no filme é TVP). Neste sentido, não dá para não reconhecer o trabalho de Vladimir Brichta. Ator da mesma “escola” de Wagner Moura e Lázaro Ramos, o baiano (ou mineiro) agarra o personagem e o vive com intensidade, da melancolia do palhaço à esbórnia do sucesso.


Uma intempérie que precisa ser vencida

Também deve se destacar Leandra Leal, que vive Lúcia, a produtora que tem que segurar as pontas das loucuras de Augusto nos estúdios da TVP e até mesmo fora deles. É muito legal ver uma personagem feminina de destaque em uma história que poderia ser 100% clube do bolinha. Por isso, a empolgação de assistir aos embates entre Lúcia e Augusto logo se esvai ao passo que percebemos a forma com que a personagem é tratada na trama. Evangélica e quadrada, ela é alvo de piadas e comentários que poderiam ter sido excluídos no primeiro tratamento do roteiro. Ainda que a intenção seja mostrar a canalhice de Augusto, o filme peca e parece perdido no tempo, já que não se redime e segue o baile como se nada tivesse ocorrido. Além disso, a já citada Gretchen entra muda e sai calada, apenas como um pedaço de carne usado para alavancar a audiência. Ainda há um longo caminho…


Você quer, Birdman?

É notável que “Bingo” bebeu na fonte de outro filme recente que conta a história de um ídolo caído. Assim como em “Birdman”, vemos acentuados os conflitos de identidade do protagonista e sua relação entre altos e baixos com o filho e colegas de trabalho. E se a o espectador não captou a inspiração, o fato de Augusto aparecer constantemente de cueca (‘figurino-marca’ de Birdman) é uma clara referência ao trabalho de Alejandro González Iñarritu.

No entanto, a maior herança do filme estrelado por Michael Keaton é técnica. O DP Lula Carvalho faz um trabalho irrepreensível que confere melancolia a um colorido auditório de programa infantil, acentua a decadência das pornochanchadas e evidencia a fase “dark” pela qual passa Augusto assim que ele começa a afundar nas drogas. Seja com um apagar de luzes do estúdio do Programa do Bingo ou com um falso plano sequência que viaja pela São Paulo dos anos 1980 até nos levar ao destino de Augusto, o trabalho cuidadoso de Carvalho praticamente toma conta do filme de Rezende.

Ao que os créditos começam a subir na tela, “Bingo” deixa um gosto de empolgação no espectador. Assim como Augusto provou a Armando (Pedro Bial, em uma escalação que não deixa de ser piada pronta, já que o jornalista foi apresentador do programa popularesco mais ame-ou-odeie dos últimos anos) que “há vida fora da Mundial”, o filme de Rezende é a mostra de que dá para fazer, sim, uma (pseudo) cinebiografia carregada de acidez, pungência e, ao mesmo tempo, respeito pelo personagem em estudo. Agora só falta dar às personagens femininas substância e vida própria.