Um ator, famoso no passado por interpretar um super-herói, tenta uma nova chance de prestígio adaptando no teatro. Se você achou parecido com a história de vida do ator americano Michael Keaton, tenho uma boa e uma má notícia. A má é que essa proposta é ficcional e serve como trama básica de Birdman, novo longa-metragem de Alejandro Gonzales Iñarrítu. A boa é que, como a vida tem dessas, o filme é estrelado pelo próprio Michael Keaton.

Em um dos projetos mais “a arte imita a vida” a pintar nos círculos do Oscar desde “O Lutador”, de Darren Aronofsky, Keaton brilha no papel de Riggan Thomson, um ator em fim de carreira que ficou famoso por interpretar o personagem-título nos anos 90 (qualquer semelhança com o herói alado da Hanna-Barbera é mera coincidência). Em crise, ele decide apostar todas as suas fichas em uma nova chance de estrelato adaptando um texto consagrado para uma peça da Broadway.

Em uma versão light do susto que levamos aos vermos Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva em Amor, de Michael Haneke, cinquenta anos depois de seus filmes mais icônicos, é surpreendente olharmos para Keaton, que nos acostumamos a associar a papeis vibrantes como Batman e Os Fantasmas Se Divertem, cheio de rugas, interpretando alguém que vive à beira do colapso.

michael keaton birdman ou a inesperada virtude da ignorânciaEle não é o único: o teatro em que a maior parte da história se passa está lotado de gente no limite. Temos um agente dedicado que tenta manter seu cliente nos trilhos e tudo o mais funcionando, interpretado à perfeição pelo comediante Zach Galifianakis, mais famoso pelos filmes da franquia Se Beber, Não Case. Temos o ator de método que cria problemas no ambiente simplesmente por ser babaca (Edward Norton, outro ator que está precisando urgentemente de uma redescoberta). Temos a filha do ator, que teve problemas com drogas e é uma agente provocadora na produção (uma ótima Emma Stone). E temos uma atriz de meia-idade para quem essa peça é realização de um sonho (Naomi Watts no modo “aquém de seus talentos mas servindo à função”).

De tanto tempo que passamos no teatro, ele acaba se tornando um personagem e passamos a conhecer seus corredores, camarins e cenários e a claustrofobia desses ambientes reflete o aperto emocional dos personagens. O filme também acaba se tornando uma análise sobre o papel que o teatro (e a arte, de uma maneira geral) representa na vida dos artistas, se tornando um amálgama de projeções de todos os envolvidos na produção, em que as necessidades de cada um (sucesso, recomeço, realização de sonhos, etc.) tomam papel importante no desenvolvimento da peça.

Falando em claustrofobia e tensão, estou orgulhoso de ter conseguido escrever cinco parágrafos sem falar nisso, mas é inevitável: num exercício primoroso de técnica, o filme todo é estruturado como se fosse uma única e enorme tomada. Essa técnica reforça as tensões do filme e nos coloca numa posição incômoda de voyeurs. É um jogo de fumaça e espelhos, claro, já que os próprios realizadores trataram de dizer que houve cortes, mas eles foram trabalhados de tal forma dentro da trama que são virtualmente imperceptíveis e demonstram, mais uma vez, o alto grau técnico do diretor de fotografia Emmanuel Lubeski. Por suas parcerias com Alfonso Cuarón e Terrence Malick, Lubeski já pode ser considerado um gênio moderno da forma, tendo ganhado, inclusive, o Oscar pela fotografia de Gravidade no ano passado.

Apesar de seus temas, Birdman é descrito por seus criadores como uma comédia de humor negro, o que, por si só, é uma piada. Apesar de não chegar ao patamar de desespero das obras prévias de Iñarrítu, como 21 Gramas ou Babel, o que por si só já demonstra a versatilidade do diretor, mas o filme está longe de ser marcado pela sua comicidade. Ele tampouco é extremamente original considerando que tanto sátiras do showbiz quanto histórias de artistas depois do auge já foram feitas antes, com variados graus de sucesso. No entanto, Birdman se apresenta de uma forma tão eufórica e calcada em atuações, em sua maioria, tão surpreendentes (se não me fiz claro, todas as minhas fichas para o Oscar de Melhor Ator desse ano estão em Keaton), que vira algo mais. Vira um dos filmes mais impressionantes do último ano, um feito por si só heroico.