Em tempos de Fla-Flu político, que vivemos hoje em dia no Brasil, fico imaginando o (cansativo) burburinho que um filme como Capitão Fantástico causaria se fosse produzido, a partir de um edital de dinheiro público, no nosso país.

Apresentando uma proposta de vida e educação à esquerda, com renúncia de bens materiais, desprezo às grandes instituições financeiras, ao capitalismo, fascismo, instituições religiosas, o filme de Matt Ross – ator de pouco destaque em outras produções, com maior notoriedade em Psicopata Americano (2000) – é um prato cheio para teorias utilizadas pelos lados tão distintos para mostrar o seu ponto de vista.

Porém é importante lembrar que antes disso, Capitão Fantástico felizmente entende que escolhendo ou não um lado, é fundamental que o trabalho vá além do discurso, que seja cinema, antes de um ensaio sociológico, o que garante ao longa um status de agradável experiência cinematográfica.

O filme nos apresenta a Ben (Viggo Mortensen) e aos seus seis filhos que vivem em uma floresta no noroeste pacífico. Essa escolha parte do pai, que estabelece uma rotina árdua de exercícios físicos e estudos aos filhos, afastando-os das ideias capitalistas, educando-os a partir das experiências na floresta, onde eles consomem aquilo que plantam e caçam, buscando valores mais simples para viver. Em um determinado momento, Ben descobre que a sua esposa, a mãe dos seus filhos, que estava internada em um hospital, suicidou-se. O fato motiva o marido, e os seus filhos, a irem até o enterro da esposa, reencontrando assim a sua família, novamente se relacionando com pessoas e situações que eles não estão habituados a conviver, expondo as diferenças causadas pelo seu estilo de vida peculiar.

Assemelhando-se, de certa forma, à sociedade alternativa que assistimos em A Praia (2000), o filme nos mostra a família de Ben de uma maneira que evita a “escolha de lado”. Sim, somos apresentados a figuras espiritualmente superiores às da civilização capitalista (“Americanos são subdesenvolvidos”), sem vícios, ativa física, cultural e intelectualmente, que convive em harmonia, com respeito e compreensão, sempre dizendo a verdade, não importa em que circustâncias, que entende de uma maneira aguçada a potência que existe na relação humana com a natureza, e do quanto necessitamos de pouco para termos uma vida plena, afinal nos cercamos de coisas desnecessárias na busca vã por conforto, reconhecimento, que na grande maioria das vezes nos leva a acomodação.

Ao mesmo tempo, também pode-se entender que Ben cria os seus filhos com o rigor que beira uma educação militar, bem distante da liberdade de escolha e pensamento que tanto é falada por ele, e por todos os livros que ele obriga os filhos a ler e não apenas decorar o que está escrito, mas sim empreender um pensamento a respeito. Também priva os seus filhos de um contato maior com pessoas que vivem fora daquele estilo de vida, lugar que podemos chamar (ou não) de mundo real, fazendo com que toda a evolução de pensamento que eles adquiriram desde cedo torne-se “sem uso” em uma série de questões de relacionamento.

A cena que apresenta o total despreparo de Bodevan (George MacKay) ao se relacionar com uma garota é um exemplo claro disso, de como o lado emocional do garoto, apesar de extremamente desenvolvido em muitos aspectos, deixa a desejar na parte das relações humanas com estranhos.

Muito se fala do quanto é atrasada e problemática a metodologia de ensino das escolas dos níveis básicos, e do quanto é necessário que as crianças desenvolvam habilidades que vão além de decorar fórmulas matemáticas, ou decorar datas. Ao mesmo tempo, a escola é um local no qual o aluno aprende a conviver com pessoas diferentes, com outras culturas, valores, e essa convivência é importante no desenvolvimento pleno das suas aptidões. Privar alguém disso, mesmo que para realizar uma educação que irá trazer benefícios em outros aspectos, pode dificultar a inserção dessa criança em diversos ambientes.

Prato cheio para um Fla-Flu político, não é mesmo? Afinal de contas, a mesma obra oferece elementos fartos para argumentação de dois pontos de vista opostos.

Lembra até um fato que hoje em dia, curiosamente, Trainspotting (1996), a obra-prima de Danny Boyle, é utilizada por educadores conservadores como exemplo a ser seguido, interpretando a jornada de Renton como autodestrutiva, mas que no fim entende-se que aquilo que foi vivido era vazio, que se aprendeu uma lição, e que tudo aquilo fazia parte de um passado maldito. Interpretação diferente da que o filme recebeu logo após os seu lançamento. Enfim, divago.

Sem dúvida nenhuma há excessos em um pensamento tão rigoroso. Como é bem mostrado no conflito de Ben com o filho do meio, Rellian (Nicholas Hamilton), até que ponto o pai tem o direito de determinar todo o caminho que o seu filho vai seguir durante a vida, mesmo que ele saiba que está fazendo aquilo para o seu bem? Até que ponto o filho pode dizer que não aceita aquilo, e quer seguir um caminho diferente, a partir do que ele acredita?

Na cena em que eles chegam a casa da irmã de Ben, uma típica família de classe média dos Estados Unidos, o jogo ali colocado fica muito evidente. Afinal, quem é que está errado ali? Quem deu a educação mais problemática, o pai que distanciou os filhos da civilização, e que come aquilo que é caçado na floresta, ou aquele que não oferece rigor intelectual aos filhos, viciados em vídeo games, e que não sabem articular um pensamento minimamente denso, apesar de irem à escola com regularidade?

Os questionamentos propostos pelo filme são muito interessantes, ainda mais quando, a partir de um acontecimento no terceiro ato, Ben se vê na necessidade de afrouxar tudo aquilo que acredita que é benéfico ensinar aos seus filhos, rendendo-se a uma série de questões que antes ele considera desnecessárias, pois finalmente entende que não é possível viver bem em sociedade sem compreender aqueles que, na sua opinião, vale destacar, possuem um pensamento inferior, ou sequer são capazes de formular pensamentos acerca da realidade que o cerca, e que não se pode tirar sarro das pessoas, até mesmo de cristãos (das melhores piadas do filme).

A lógica pragmática, e facilmente enxergada como a mais correta aos olhos do cidadão médio, trazida pelo avô dos meninos no personagem de Frank Langella, surge, é necessário admitir, como o pensamento de um vilão que, mesmo que sinceramente pense estar fazendo o que é melhor para os seus netos, age da maneira que age por estar acostumado com o jogo imposto pelo dinheiro, pelo confronto, pelo descrédito que é comumente oferecido às minorias. Até concordo com o ponto colocado pelo filme, mas de fato o personagem surge como uma pessoa com camadas a menos, para que desta forma a impressão que se tenha dele seja mais fácil de causar afastamento.

Pensando nos aspectos mais técnicos, a nossa entrada no filme só se torna possível graças a forte harmonia invisível presente no elenco. Não há como negar que se trata de uma família, pela maneira como se olham, como se expressam, se tocam, brigam. Desnecessário e injusto citar destaques individuais, pois a alma do filme reside na conexão viva entre os atores, todos ótimos.

Fotografado em boa parte com câmera na mão, a fotógrafa Stéphane Fontaine utiliza o recurso como uma maneira de mostrar o pensamento fora da curva daquelas pessoas, que não se enquadram em padrões pré-estabelecidos, que não cabem num plano Andersoniano, em movimentos de câmera sofisticados, em planos estáticos. Estão soltos, tremidos, mas seguros.

Contando com um final que pode ser considerado frustrante pelas facilidades impostas pelo roteiro, que também é de Ross, Capitão Fantástico é um daqueles filmes em que os bons momentos, que são vários, certamente adquirem um peso maior, se comparados às falhas, pois são capazes de apresentar uma visão de mundo diferente, que nos instiga ao mesmo tempo que diverte e entretém.