Às vezes me pergunto o que define um grande diretor: a) quando ele investe em um trabalho autoral; b) quando ele regrava uma obra de outro diretor e a transforma em algo tão bom quanto o original; c) quando retorna ao seu “mundo particular” cinematográfico para fazer uma nova leitura de um assunto na qual ele é especialista, conseguindo resultados tão interessantes quanto sua outra obra anterior.

Scorsese é facilmente enquadrado em qualquer um dos pontos acima. Já demonstrou sua versatilidade e estilo autoral em obras-primas como Taxi Driver (1976) e Touro Indomável (1980); o seu talento é nítido também nos remakes que realizou como Cabo do Medo (1991), uma revisão magistral do ótimo Círculo do Medo (1962) e a ótima releitura do policial chinês Conflitos Internos (2002) transformado no submundo da máfia irlandesa em Os Infiltrados (2006).

Já o último ponto do primeiro parágrafo casa muito bem com Cassino (1995), um trabalho geralmente associado pela crítica e público como uma cópia requentada do clássico dirigido pelo diretor, Os Bons Companheiros (1990), tanto pela semelhança do enredo – uma história de gângsteres e mafiosos – quanto pelos recursos técnicos como a narração em off, os planos-sequências elegantes e a montagem dinâmica, todo o cinema pop praticado pelo cineasta. Outra característica comparativa é a equipe técnica: o roteirista Nicholas Pillegi, a montadora Thelma Schoonmaker e o casting de atores principais e coadjuvantes que também estiveram presentes em Goodfellas.

Aproveitando que a nova temporada dos Clássicos do Cinemark é voltada aos filmes de máfia, é uma ótima oportunidade para rever Cassino e constatar que apesar de não estar no mesmo nível da obra-prima Os Bons Companheiros, jamais pode ser considerado como uma sombra do filme de 90 (ou então diminuído), até porque apresenta ótimas qualidades. É a história dos gângsteres de Las Vegas que por mais que seja uma possível trama “Dejà Vu”, é construída pelo diretor em um ritmo ágil e frenético com riqueza de detalhes em relação as ações e engrenagens da máfia dentro dos cassinos americanos.

Por isso, Cassino pode ser considerado um filme subestimado dentro da filmografia de Scorsese. É superior algumas outras obras incessadas do diretor. Sim, o próprio diretor nunca negou nas entrevistas, que sua intenção era fazer uma continuação indireta e informal de Os Bons Companheiros. Ainda assim, Cassino consegue ser único e diferente pela forma como Scorsese aborda a realidade da máfia de Las Vegas.


Menos abordagem pop, mais estilo épico

Adaptado de fatos reais, acompanhamos Sam “Ace” Rothstein (Robert DeNiro), um talentoso jogador, promovido pela máfia de Las Vegas para dirigir um cassino em razão da sua visão estratégica e por jamais se entregar a compulsão em jogos. Apesar das qualidades, ele possui uma fraqueza: sofre de compulsão emocional que impede de ter clareza sobre suas ações pessoais, ainda mais quando se apaixona por Ginger McKeena (Sharon Stone), uma ex-prostituta que domina todos a sua volta, com exceção do cafetão. Fecha este trio, o gangster violento e parceiro de Sam, Nicky Santoro (Joe Pesci).

A diferença entre Os Bons Companheiros e Cassino está relacionada ao ângulo como ambos abordam suas visões sobre os gângsteres. Scorsese evita principalmente o glamour e o fascinio  da máfia mostrada no primeiro filme, enveredando por um caminho mais sombrio e realista no segundo. Aqui, há uma organização das relações da máfia bem mais intricado,  onde o roteiro de Pillegi valoriza o estilo épico, deixando o ritmo bem menos dinâmico que o filme anterior. Em contrapartida,  Cassino revela sua força na sua sólida estrutura narrativa. A direção e o roteiro fazem uma boa parceria ao retratar o comando da máfia de Las Vegas sobre os jogos e esquemas em um painel complexo, mas bem ajustado a sua narrativa, jamais soando cansativa aos olhos do público que mesmo diante do ritmo ágil de montagem, consegue acompanhar o enredo e personagens. Pode até ser um filme que demora a engrenar no início, mas quando engata a segunda, você percebe que é o velho Scorsese, que manja e comanda o mundo da máfia como ninguém.


Cassino representa o auge do exercicio estilistico de Scorsese

Para um cineasta como Scorsese com mais de 20 anos de estrada e vários trabalhos que esbanjam estilização visual, Cassino é o mais maduro neste quesito. Talvez seja exagero, mais o diretor atinge o seu auge em relação aos filmes de máfia, equilibrando uma narrativa dinâmica com o visual discreto, mas que nas entrelinhas é repleto de recursos estéticos que enchem os olhos, principalmente nos detalhes técnicos. O melhor exemplo disso é quando Scorsese direciona a narração em off geralmente usada em favor dos protagonistas (Ace e Nicky) para Frank  (o ótimo, Frank Vicent), um personagem secundário. O cineasta utiliza a imagem congelada, onde podemos acompanhar a forma de pensar do personagem antes dele responder uma pergunta de um dos chefões. É um exercício cinematográfico inovador e ousado, que mostra que até um veterano como Scorsese, consegue trazer novidades ao cinema.

Tecnicamente, Cassino é um filme, para quem gosta de cinema, estudá-lo, graças as suas qualidades artísticas. A fotografia de Robert Richardson é marcada por um fascinante contraste de luz e sombras que sempre envolvem Ace, Nicky e Ginger.  A montagem de Thelma Schoonmaker é marcante, pois acelera a história sempre de forma dinâmica, mas acerta na construção dramática relacionada aos personagens. Em outras palavras cria fusões narrativas marcantes. E por fim, Scorsese destila seu repertório cinematográfico com plano-sequências memoráveis, travellings insinuantes – um logo no início do filme que sai das nuvens para mostrar Los Angeles a noite é espetacular – além de planos estáticos que funcionam em prol da narrativa. Por fim, merecem elogios, as excelentes atuações do trio principal. De Niro e Pesci reeditam a ótima química de Os Bons Companheiros. Ambos orquestram aquela mesma essência impulsiva dos seus personagens de outrora. É inegável que Joe Pesci cria outro personagem temperamental memorável e Sharon Stone sem dúvida tem o melhor papel da sua carreira.

Logo, Cassino é um legítimo representante dos filmes de máfia de Scorsese. Não deve nada aos seus outros trabalhos no gênero como Os Infiltrados, Gangues de Nova York e Caminhos Perigosos. Retrata bem a máfia e sua ganância humana. É claro que Os Bons Companheiros continua superior, até porque Cassino apresenta pequenos problemas em razão do ato final enfraquecido (Scorsese termina o  filme de forma fria) e a sensação de  um trabalho em determinadas situações, redundante. Ainda assim, mostra o cineasta em seu auge estético, cada vez mais perto da perfeição visual de encher os olhos. Por isso, prestigie a sessão de hoje no Cinemark para valorizar esta obra subestimada, que merece mais respeito na filmografia deste grande Maestro do Cinema.