Julie Delpy é mais conhecida como a atriz principal da trilogia de Richard Linklater, “Antes do amanhecer” (1995), “Antes do pôr-do-sol” (2004) e “Antes da meia-noite” (2013). Porém, quem for mais a fundo na carreira dessa versátil artista descobre que ela também já dirigiu cinco longas-metragens, com um programado para o ano que vem. Dentre essa filmografia, o exemplar mais curioso até agora talvez seja “A condessa” (2009).

É emblemático que Delpy, que já se pronunciou abertamente sobre sua posição contrária à obsessão com a juventude que a indústria cinematográfica impõe às atrizes, tenha se debruçado à direção, roteiro e como protagonista de “A condessa”. O filme retrata de maneira livre a lenda de Erzsebet Bathory, a nobre húngara que entrou para a história no século XVI, quando foi acusada de assassinar jovens virgens para se banhar com o sangue das moças e, dessa maneira, preservar sua aparência sempre jovial.

Delpy envolve sua anti-heroína em cores lúgubres, cortesia do diretor de fotografia Martin Ruhe (de “Control”). O vermelho-sangue, como era de se esperar, destaca-se no ambiente contaminado por tons cinzentos, quebrados apenas pela pálida luz das velas dos salões de sua corte. É em meio a essa atmosfera pouco receptiva que Bathory é introduzida ao espectador como uma mulher cujas características não parecem se encaixar de todo naquele universo.

Poderosa e rica, até mesmo o rei lhe deve uma fortuna, e seu tino para a política é perceptível. Além disso, ela é dona de uma beleza invejável para sua idade. No final das contas, quando ela se apaixona pelo jovem Istvan Thurzo (Daniel Brühl), esta última é a única qualidade que parece importar à Bathory, uma vez que é a que os homens que a rodeiam mais destacam. Delpy constrói sua protagonista do século XVI, mas poderia muito bem ser do século XXI: se a mulher é inteligente, esperta, perspicaz, esses termos ainda estão abaixo da moeda de valor representada pela beleza. Culpa da sociedade em que a condessa se encontra e que, sempre que possível e de maneiras sutis, faz questão de diminui-la de sua posição de poder por conta de seu sexo.

Esses olhares e possíveis interpretações passam à margem de “A condessa”, delineando camadas para além do que parece ser a intenção inicial da diretora ao retratar o processo de loucura e obsessão de Bathory. O que começa como um simples pedido de um “óleo especial” para tornar a pele mais macia para o passivo amante resulta num banho de sangue absurdo, e aí também vemos mais outra faceta de Delpy como diretora: ela tem talento para um gore pontual! Que o diga a cena em que a condessa costura uma mecha do cabelo do amado no próprio peito.

A interpretação assustadora de Delpy, que não fez questão de esconder as marcas de expressão em seu rosto aos 40 anos na época, é intensa, ao passo que seu contraponto se dá com a figura de Brühl como Istvan, o amante que acaba sendo o responsável pela queda da condessa. Ele é jovem, bobo, quase inocente, o que talvez se relacione justamente com a pureza buscada pela melancólica nobre, e o ator passa essa faceta numa interpretação que beira o sem-sal. Nesse caso, dá certo porque mostra o tom completamente oposto ao de Delpy e, por conseguinte, o fato de que a união de Bathory e Istvan era fadada ao fracasso.

O ritmo do filme também não decepciona, com um andamento que dá conta de entender a natureza íntima e melancólica de uma mulher cujo exterior parece à prova de tudo até o seu momento final. De maneira inteligente, é a aparência exterior, seu trunfo, o que a condessa acusa de ser a causa de sua desgraça (o abandono por parte de Istvan), gerando a obsessão que, de fato, a derrota. Delpy conduz essa trajetória, que joga sempre com o que é mostrado e o que é escondido, com um domínio que a coloca para além da categoria de “atriz-dirige-filmes-nas-horas-vagas”. No que seu roteiro desacelera a ação, mas sem fazer com que o filme se torne arrastado, ele busca aprofundar a personagem e nos levar junto nessa jornada.

Tivesse Delpy nos conduzido com um pouco mais de paixão, “A condessa” sairia do terreno do bom para o marcante. Ainda assim, o filme surge como uma curiosa incursão acerca de um personagem tão fácil de tornar caricato, erro este que ela não comete.

Nota: 8,0