Agnès Varda é uma das mais importantes diretoras do cinema. O título pomposo tem razão de ser, como bem prova “Cléo de 5 à 7” (1962), o filme mais conhecido de sua vasta filmografia permeada de ficção, documentários e de mesclas entre os dois. Por vezes associada à Nouvelle Vague (e mais comumente relacionada à Rive Gauche), Varda constrói nessa obra uma narrativa tão leve quanto profunda, num equilíbrio que torna a experiência de assistir a “Cléo de 5 à 7” divertida, mas nunca vazia.

Na trama, acompanhamos as duas horas (que, na verdade, são uma hora e meia) na vida da personagem-título, uma jovem e bela cantora interpretada por Corinne Marchand. Ela aguarda pelo resultado de um exame que pode apontar uma doença grave e, numa leitura de cartas de tarô, a morte parece certa. Cléo segue na angústia pela confirmação (ou não) do problema, enquanto vaga pela cidade e passa por uma espécie de autodescoberta ao refletir, pela primeira vez, sobre a brevidade da vida.

A maneira como Varda conduz a história de Cléo é extremamente suave e simbólica. A diretora elabora um jogo visual no qual a vaidosa cantora, obcecada por sua própria beleza, olha para algo além de si e, a partir disso, conhece-se melhor. De início, Cléo usa roupas chamativas e uma peruca que a deixa com a aparência de uma boneca viva e atrai os olhares masculinos. Não por acaso, nesses momentos há a presença quase que constante de espelhos no espaço da mise-en-scène, pois Cléo quer ser vista e, caso ninguém a olhe, ela mesma pode fazê-lo. Até para receber seu amante em casa, ela parece conduzir um teatro: veste um roupão chamativo, arruma a peruca e esconde sua doença. Sue coquetismo se completa pela presença da fiel secretária que faz vezes de babá, Angèle (Dominique Davray) e dos compositores que vem lhe paparicar e apresentar canções, já que ela não consegue compor por si só.

Graças a estes últimos, Varda também mostra, numa belíssima seqüência, um criativo domínio de câmera. A diretora insere movimentos inusitados quando Cléo canta suas canções, destacando-se aí a interpretação de “Sans Toi”. É justamente após ela cantar essa mórbida canção de amor, a qual parece lhe despertar sentimentos genuínos, que se inicia o processo de transformação de Cléo. Ela se livra da peruca e das roupas chamativas, veste-se de preto e sai às ruas, o que hoje é um registro único da Paris dos anos 1960, pois nesses momentos a cineasta não opta por cenários. Tal escolha contrasta com o ambiente da casa de Cléo, no qual há uma cama de contos de fadas, um balanço e cortinas tão grandes que parecem tiradas de um teatro.

Os espelhos despedem-se da trama quando Cléo encontra uma amiga, Dorothée (Dorothée Blanck), que trabalha como modelo vivo, o que demarca outro ponto de transformação para a personagem-título. Dorothée deixa cair um pequeno espelho de sua bolsa, o que para Cléo é um prenúncio de morte, mas que, simbolicamente, parece assinalar sua troca para um olhar mais aprofundado para o mundo ao seu redor e para o seu eu interior. A modelo também é um interessante contraponto à Cléo, pois sua relação com o olhar do outro é bastante diferente. A cantora que antes queria ser observada, agora afirma que nunca poderia posar nua, pois poderiam ver suas imperfeições, ao passo que Dorothée encara o ofício com tranqüilidade e diz que os escultores a observam mais preocupados com suas devidas obras.

A presença massiva de cenas quase documentais do cotidiano de Paris são outro elemento importante para “Cléo de à 7”. As ruas agitadas, os cafés lotados, os táxis e os parques são “a vida real” que parece escapar por entre os dedos da moça na medida em que suas duas horas até o recebimento do resultado de seu exame vão se esgotando. Varda opta por contabilizar na tela os minutos de Cléo, esticando ou encolhendo-os para criar um tempo que passa de maneira emocional, e não lógica.

O movimento também é uma constante nas externas de “Cléo de 5 à 7”. São inúmeras as cenas em que a câmera navega pela cidade, seja dentro dos carros, seja acompanhando os passos de Cléo, seja dançando dentro dos cafés. A cidade parece vibrar como um vespeiro em mais um contraponto com o ambiente da casa da moça. A luz é sempre suave e o preto-e-branco que domina o filme (com exceção da cena da leitura de cartas de tarô) também não traz um contraste carregado, como que deixando a cidade ainda mais vibrante. São nesses ambientes “naturais” que Cléo parece experimentar de fato a vida que antes lhe vinha em segundo plano, atrás das preocupações de ser vista e desejada.

Não por acaso, Varda insere em “Cléo de 5 à 7” um pequeno curta-metragem mudo que dirigira um ano antes, “Les fiancés du pont Mac Donald” (1961). Na comédia, Jean-Luc Godard interpreta um jovem que passa por confusões ao colocar seus óculos escuros e confundir-se achando que sua noiva (Anna Karina) estava morta. Tal como Cléo, ele vira tudo “escuro demais”, mas ao final, livrando-se dos óculos, ele encontra um final feliz. Cléo diverte-se com o filme e parte para um parque, onde encontra um personagem que, simbolicamente, tenta lhe tirar os óculos escuros, o soldado Antoine (Antoine Bourseiller).

Varda aborda temas metafísicos que, nas mãos de outro diretor menos competente, muito bem poderiam se esvaziar num melodrama ou se tornarem extremamente pesados. Porém, ela opta sempre por uma delicadeza que vai além do plano visual, deixando ao espectador uma vontade de, tal como Cléo, olhar o mundo e a si mesmo sob um novo ponto de vista.

Nota: 9,0