Nos últimos tempos, tem-se percebido uma tendência de filmes nacionais que abordam o cotidiano. Sem grandes reviravoltas, elementos fantásticos, discussões latentes e nem tampouco situações que alimentem o desejo voyeurístico: essas produções optam por contar histórias pautadas na realidade ordinária, carregando-as de afeto e perspectivas pouco abordadas no cinema “popular”. 

Ao pensar nesse tipo de produção, lembrei-me de um texto que conheci recentemente de Ursula K. Le Guin no qual aborda a ficção como uma cesta. A escritora de “A Mão Esquerda da Escuridão” parte para uma leitura diferente de narrativas, na qual subverte e desvirtua alguns conceitos clássicos do universo ficcional como a figura do herói, o instrumento de ação e o propósito da jornada. 

A figura de um herói

A autora faz um passeio pelo início da história humana e da operacionalidade do sistema trabalhista, dividindo os indivíduos em duas classes: os caçadores e os coletores. Trabalhando cerca de 15 horas semanais, alguns membros do grupo original — formado pelos coletores — tiveram tempo sobrando de outras atividades para sair e caçar mamutes. Quando retornavam, traziam mais do que um animal morto nos ombros, mas também o relato da caça. Em um mundo coordenado pela oralidade, essas histórias criaram heróis. Le Guin comenta: 

“Essa história não tem somente Ação, ela tem um Herói. Heróis são poderosos. Antes que você possa perceber, os homens e as mulheres no campo de aveia silvestre, bem como suas crianças, e as habilidades dos criadores, e os pensamentos dos que pensam, e as músicas dos que cantam, tudo isso se torna parte do conto do Herói e fica a serviço desse tipo de narrativa. Mas essa não é a história deles. É a história do Herói.” 

Poderia perguntar de quem falam os clássicos, as lendas e os mitos? A resposta mais óbvia seria do herói. De Ulisses a John Wick, o cinema e a literatura estão permeados de arquétipos que emulam este ser nobre, carregado de bravura e lealdade, exalando masculinidade e agressividade. O herói o qual a escritora norte-americana se refere, no entanto, é um embrião do que nos convencionamos a acompanhar, uma vez que ele ainda não passou pela lupa da ficção sendo, ao mesmo tempo, pessoa e personagem de suas “aventuras”.

Ao olhar para a História com mais atenção, contudo, Le Guin nos convida a encontrar um outro herói. Alguém que não tenha a melhor narrativa — Tyrion Lannister não se criaria aqui —, mas de quem realmente dependamos e cuja ausência altere o desenrolar progressivo. Ela propõe que o verdadeiro herói seja uma cesta, ou seja, um recipiente onde se possa armazenar grãos para o inverno, carregar as coisas em segurança, em suma, algo que guarde. É dentro deste recipiente que se escondem estratégias de sobrevivência para além de enfrentamentos com seres não humanos e das guerras. 

E quem são os portadores das cestas? Quem até hoje utiliza recipientes que possam guardar suas coisas e transportá-las em segurança? Voltando ao grupo de indivíduos iniciais, compreendemos que as mulheres ocupavam o cargo de coletores. Não cabia a elas mobilizar as tropas ou os caçadores que viram a abater os grandes animais. Nesse processo, a mulher aparece como um não humano enquanto, pelo seu destemor e representatividade social, o herói se afirma como ente humano. Não qualquer indivíduo, mas a figura máscula, que porta armas (instrumento de ação) e conquista seu oponente (propósito da jornada). 

A partir deste novo herói — o cesto e o coletor —, reflexiona-se acerca da necessidade de se contar histórias que foram silenciadas, histórias vitais que carreguem sentido, guardando as coisas em uma particular e poderosa relação entre si e conosco. Narrativas que no lugar de heróis contenham pessoas cheias de fraquezas e bobagens e, que, quando laboriosamente desatadas, apresentem composições carregadas de começos sem fins, de iniciações, de perdas, de transformações e traduções. É nesse emaranhado de histórias a serem contadas e personagens naturais e tangíveis, que percebo um aceno do nosso cinema. 

Um aceno para o cotidiano

Embora mais de 20 anos separem a “teoria” de Le Guin do atual momento do cinema independente nacional, percebo semelhanças entre sua proposta e o que vem sendo executado em nossas narrativas cinematográficas. Cineastas contemporâneos como André Novais de Oliveira, Gabriel Martins, Marcelo Gomes, Felipe Fernandes e Adanilo em seu “Castanho”, sem perceber, trazem narrativas de cesto ao transpor para as telas os ricos relatos presentes no cotidiano e o afeto que os envolve. Mas não quero falar sobre eles. 

Explico o motivo: para mim, mais do que um campo aberto à pluralidade, a ficção como uma cesta é uma forma de nos debruçarmos sobre a autoria e perspectiva feminina. Por isso, gostaria de pensar em como Amanda Pontes e Michelline Helena conseguem transpo-la no longa-metragem “Quando eu me encontrar”. 

“Quando me encontrar” dentro de uma cesta

Escrito e dirigido pela dupla cearense, este é um filme sobre esquecimento, memória e mulheridade. Um belo dia, Dayane resolve partir. Sem contar ao noivo, a mãe ou a irmã, ela simplesmente vai embora. Ainda que sua decisão atravesse toda a narrativa e se fixe como o grande mistério a ser resolvido — devo destacar, contudo, que as roteiristas o fazem de forma ferrantiana — a pergunta que nos envolve, no entanto, é: como fica quem fica? 

Michelline e Pontes tecem uma história de pessoas quebradas, ausentes. Dayane é uma voz, uma tatuagem, um emoji no WhatsApp. Já as figuras que deixou para trás estão longe de serem exemplos de bravura e lealdade, uma vez que são personagens complexos, bem delineados que se alicerçam em uma estrutura naturalista e carregadas de diálogos orgânicos. Todos precisam combater os próprios fantasmas cotidianos que lhes perseguem e a ausência só acentua o vazio e a sensação de incompletude que ela deixa entre eles. 

A irmã adolescente vive os dilemas da fase, entre mudança de escola e descoberta da sexualidade, precisa se encontrar sem ter o apoio, amparo e parceria da irmã mais velha. Já o noivo, explode diante de sua partida, sem conseguir trabalhar direito, perseguindo a melhor amiga de Dayane e externando a revolta pelo rompimento abrupto. Quem se destaca, neste ínterim, é Marluce, a mãe de Dayane. Trabalhando como servente na escola que a filha mais nova estuda, dona de uma banca de churrasquinho a noite, tenta ser forte e engolir a dor da falta. Muito contida, há um tom de desgosto e resignação em seus atos e diálogos como se estivesse apta a transbordar suas emoções a qualquer momento, mas elas ficam sempre controladas, afinal precisa ser resiliente para quem permaneceu. 

Como um exercício de observação, as diretoras retratam pessoas comuns, trazendo para o centro da trama uma figura apagada pela narrativa brasileira, embora constante na vivência nacional: mulheres negras periféricas. E é sobre esse viés que todas as personagens femininas de “Quando eu me encontrar” precisam ser enxergadas e isto não apenas lhes oferece mais camadas como também enfatiza a delicada teia de relações propostas. 

A mulher negra está no último degrau da escala social, por isso mesmo Davis afirma que quando nos movimentamos, toda a estrutura social se movimenta conosco. É exatamente isso que a partida de Dayane faz, ainda que de uma forma microespacial, por meio desta decisão ela rompe com o conformismo, com a ordem e com o ciclo de abandono maternal familiar. Por outro lado, penso em Marlene, negligenciada pela mãe na infância e abandonada posteriormente pela filha. É curioso que o dilema enfrentado com sua caçula provenha do fato desta querer que a mãe pare de se sacrificar e viva uma vida feliz. Mais uma quebra no ciclo maternal. 

As diretoras evitam qualquer julgamento de moral em relação à personagem ausente e as escolhas dos que ficam. Os motivos da fuga ficam restritos àquela que não se encontra presente para justificar. Embora nunca vista, Dayane poderia ser nossa protagonista, já que ocupa a centralidade da narrativa, é ser a figura de quem guardam sentimentos, objetos e afetos. Transformando este filme numa poesia singela, carregada de empatia humanista, algo ainda pouco explorado em nosso cinema. 

Estamos diante de um pequeno drama intimista familiar, que reflete a sociedade por meio da falta de oportunidade, do descaso do sistema e da falta de amor ou um excesso desnivelado dele. São mulheres contando suas histórias de modo particular, plural e universal. Longe de apresentarem narrativas fantásticas ou mirabolantes, nos ajudam a enxergar o cotidiano, o realismo e a realidade. Estranhas e bem guardadas em cestas, como pérolas dentro da ostra à espera de conquistarem o mundo e serem vistas e revistas. E assim termos muito mais das pessoas e do dia a dia brasileiro a ser evidenciado para o mundo por meio da sétima arte. 

Parafraseando Cartola, “Deixe me ir, preciso andar” ou quem sabe me encontrar protegida dentro de uma cesta.