Em um dos diálogos de sua última peça teatral, A Tempestade, Shakespeare afirma que somos feitos da matéria dos nossos sonhos.  A aplicação do argumento do dramaturgo pode ser interpretada de várias formas, sendo a mais recorrente relacionada ao sentido de objetivos, anseios de vida. Entretanto, a palavra “sonho” esboça bem mais que isso. Você já parou para pensar no que produz sua mente enquanto você repousa a cabeça no travesseiro e tira um cochilo?

Há muita gente que afirma não sonhar ou não se lembrar dos pensamentos que permearam sua mente enquanto dormia. Já para outros a recordação dos sonhos faz parte da sua vivência, principalmente envolvendo o processo criativo, e a recuperação do significado deles se apresenta essencial. Tem gente que remói sonhos na esperança de encontrar significações para o mundo real. Nesse sentindo, fazendo uma revisão em nossos sonhos, do que somos feitos?

Em sua última obra, a diretora húngara IIdikó Enyedi utiliza os sonhos como objeto basilar de sua argumentação. Porém diferente do visual onírico que costuma permear obras que o tomam como instrumento de auxílio narrativo, seja em questão de estética ou trama, Corpo e Alma usa-o cinematograficamente de maneira seca e natural, distanciando-se da atmosfera estética que permite ao público julgar e diferenciar o sonho da realidade. Isso enriquece a trama de Enyedi.

Com uma filmografia enxuta, produções essencialmente voltadas a Hungria e um Camera D’Or em Cannes, Enyedi passou os últimos anos dirigindo episódios da série televisiva Terápia e parecia ter se auto imposto um ostracismo na sétima arte, até ressurgir como fênix na última edição do Festival de Berlim, arrastando de forma notável e rara o Urso de Ouro, FIPRESCI e júri ecumênico para a sua obra Corpo e Alma.

Contendo uma trama simples, Corpo e Alma acompanha a história de um casal que se conhece primeiramente em seus sonhos. Endre (Géza Morcsányi) administra um matadouro e Mária (Alexandra Borbély) é a nova funcionária da empresa e cuida do controle de qualidade. Durante sessão com uma psicóloga, chamada para resolver uma questão que surge na empresa, ambos descobrem que diariamente sonham a mesma coisa que o outro, sendo companheiros no decorrer da jornada onírica.

Nas mãos de um produtor/diretor hollywoodiano, essa premissa seria o suficiente para transformar a ligação dos dois personagens num tórrido romance regado a clichês do gênero. O que vai totalmente na direção oposta sob o olhar de Enyedi, que assina o roteiro, também. Não há personagens ou sensações maniqueístas na construção narrativa, o que existe são situações plausíveis de ocorrer na vida real. O ambiente criado pela diretora é comum, com personagens humanos, reais, tangíveis e mesmo a sensação onírica é natural, ordinária, sem grandes recursos que tomem o fôlego ou aticem a imaginação visual do público, é uma atmosfera que cabe dentro da nossa noção de realidade e esta é uma das principais riquezas do romance.

Embora diferentes, a trajetória de Endre e Mària permite que embarquemos na aceitação do romance. Não por ele ser imposto, mas por poder acompanhar como ele nasce e se forma. Ele é um homem maduro, que não possui o movimento de um dos braços, mas apesar dos obstáculos que isso poderia instaurar, é algo intrínseco ao personagem e que não é tomado como sua característica principal, claro que em alguns momentos somos expostos a como isso torna sua vivência diária diferente, porém esse não é o cerne dele. Mais um ponto positivo a diretora. Quanto a Mària, somos apresentados a uma mulher de exatas – utiliza os números exatos como argumentação, aplica o sentido literal em suas falas, é direta e tem dificuldade em estabelecer relações. Enyedi nos mostra esses contrapontos entre eles casando a imagem e edição. Fotografia e Montagem. O jogo de sombras expõe por meio do silêncio a personalidade deles, sem precisar de grandes truques relacionados a essas duas áreas técnicas. Isso contribui grandemente para que embarquemos nessa história.

É interessante notar como o drama particular de cada membro do casal protagonista desnuda características que são inerentes ao ser humano. Os dois são solitários e a descoberta da ligação dos sonhos os instiga a recorrerem a formas de entender e consumir o que está sendo lhes ofertado. Sem querer, os dois se envolvem numa viagem de auto-entendimento, descoberta do amor já numa idade estabilizada e de saberem lidar com o outro, o que são e o novo.

Surpreende pensar que com a química tão forte que há entre Morcsányi e Borbély seja esse o primeiro filme dos dois atores. Mas que com certeza já abre margens e atenção aos próximos trabalhos. O uso dos corpos dos dois é fundamental para a identificação da trama, como o corpo de Morcsányi reage a deficiência de Endre e as expressões solitárias e reprimidas que os dois conseguem carregar e transpassar. A boa direção de Enyedi contribui para que haja empatia com os personagens, até mesmo quando eles são distantes e frios.

Enyedi cria um romance num lugar pouco usual (matadouro), com elemento de liga comum (sonhos) e personagens tangíveis, reais e de fácil identificação. Talvez o que deixe a trama seca seja a ausência de trilha sonora, que é aplicada em uma ou duas cenas com a ideia de causar choque, mesmo choque que suscita durante algumas cenas no matadouro. O roteiro consegue dar um tom natural a toda a trama, o que nos leva a pensar em qual é a matéria que Enyedi é feita e se levaremos mais outra década para ver mais um trabalho singelo e poético (sem ser piegas e padrão) da diretora húngara. Não é a toa que o filme foi a indicação húngara para representar o país no Oscar.