Outubro de 2008 é um momento que permeia o imaginário brasileiro. Se “Linha Direta” ainda fosse um programa em exibição, o que aconteceu no conjunto habitacional do Jardim Santo André, no ABC Paulista, seria pauta para um ou alguns episódios. Coloco no plural, porque a discussão levantada por Lívia Perez em “Quem Matou Eloá?” abre margens para isso.

Lançado em 2015, o documentário apresenta uma análise crítica sobre a espetacularização da violência e a abordagem da mídia televisiva nos casos de violência contra a mulher, utilizando a situação como exemplo.

Eloá Pimentel, uma adolescente de 15 anos, foi feita refém e mantida em cárcere privado pelo ex-namorado, Lindemberg Alves, de 22 anos, no apartamento em que morava com a família, durante cinco dias. O crime foi amplamente acompanhado pelos canais de televisão, chegando a ter entrevistas ao vivo com Lindemberg direto do cativeiro.

Os homens que não amavam as mulheres

Segundo o Mapa da Violência de 2015, o Brasil é o quinto país em que mais se mata mulheres no mundo. Esse é um dado alarmante, porém, comprovado sempre que assistimos aos telejornais e observamos os principais sites de notícias; lembro bem de um início de ano em que, por três meses consecutivos, todos os dias noticiava-se a morte de uma mulher vítima de seu companheiro. Naquele tempo, poderia não estar evidente, hoje, no entanto, os elementos que compõe algumas raízes do feminicídio são escancaradas no caso de Eloá.

A adolescente e seu algoz viviam em uma relação de idas e vindas. Quando Eloá decidiu dar um basta nisso, ele começou a persegui-la, chegando a agredi-la fisicamente. Nenhuma queixa foi feita e, na época, foi sugerido que os dois retomassem o namoro como forma de acabar com a situação. Além de absurda, essa colocação assume indagações sobre relacionamentos, obsessão e controle.

Afinal, sendo Eloá menor de idade e vítima da situação, por que deveria aceitar um sentimento doentio e obsessivo? As respostas foram dadas na época e estão presentes no documentário por meio da visão midiática ofertada ao caso.

Nesse período do ano, o nome de Eloá aparece como trends topics no Twitter e, ao lado dele, o de Sonia Abrão. Isso acontece porque a apresentadora da Rede TV! foi uma das pessoas que telefonou para o sequestrador ao vivo e conduziu a conversa como se estivesse falando com um ex-participante de reality show, tratando-o como bom rapaz, trabalhador e um apaixonado em busca de uma segunda chance. Por mais que relembrar isso seja chocante, devo salientar que o comportamento da jornalista não mudou, visto o tempo de defesa que usou para um participante do reality “A Fazenda” expulso por assédio sexual, recentemente.

Black Mirror Jornalístico

O quadro apenas confirma o machismo ancorado à sociedade brasileira em que uma adolescente vítima pode continuar presa a uma relação tóxica e um homem adulto é tratado como menino ingênuo. Perez mostra como essa visão está espelhada no jornalismo e assume a posição de crítica da imprensa. Embora Sonia Abrão seja mais lembrada, o documentário recupera imagens, situações e diálogos feitos pelos jornalistas que cobriram o caso.

Para analisar o papel da imprensa, a diretora dá espaço a uma professora de Jornalismo, uma defensora pública que atua na área de defesa dos direitos das mulheres e o promotor de Justiça envolvido no caso à época que, inclusive, fez críticas públicas à imprensa logo após a morte de Eloá.

A conduta midiática do caso é um outro exemplo do que não se fazer. Entre ligações diretas para o sequestrador, houve jornalistas que se colocaram como representantes da família do agressor, negociadores e até mesmo expuseram a estratégia da polícia como furo de reportagem.

O preço de uma vida

O comportamento irregular e irresponsável soa como se em momento algum a vida de Eloá realmente importasse mais do que empresas de comunicação, carreiras e manutenção de empregos. Vale lembrar, como salienta o promotor de justiça no documentário, que a polícia se aproveitou do sensacionalismo midiático para invadir o apartamento no momento em que havia maior audiência. Tais atitudes não apenas ofereceram riscos a operação, mas também expuseram e banalizaram a violência presente ali.

Algo que precisa ser pensado, diante de tudo isso, é o fato de Eloá pertencer a uma família de classe baixa, sem acesso a advogados e sem condições de exigir da polícia e da mídia que não exponha sua filha. Se Eloá fosse uma garota rica, a exposição seria a mesma?

Infelizmente, ainda há um longo percurso social para que se compreenda os diversos tipos de violência de gênero existentes em uma sociedade conservadora como a brasileira. “Quem matou Eloá?” é um retrato disso. Uma pequena mostra de como a banalização da vida acontece diante dos nossos olhos e tem a nossa participação omissa ou como espectadores atentos. Mais de uma década do ocorrido, a tragédia ainda ecoa e os culpados permanecem repetindo os mesmos papéis.

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