Frank Capra já havia patenteado seu cinema humanista quando fez “Adorável Vagabundo”. Boa parte desse esforço na carreira foi empreendido ao lado de Robert Riskin, seu fiel escudeiro nos roteiros; este longa, aliás, foi o último trabalho que fizeram juntos. Mas Riskin não era a única peça recorrente no tabuleiro: Gary Cooper, que já havia trabalhado com Capra em “O Galante Mr. Deeds” (também escrito por Riskin), retornou à câmera do diretor cinco anos depois para esta produção. 

Todas as peças, portanto, foram colocadas em suas devidas posições. Estão aqui o bom-mocismo humanista, a condenação à hipocrisia dos poderosos e a presença de Cooper como o simplório herói Capriano. E, no entanto, algo parece ter mudado. Teria sido Capra ou teria sido o mundo? O fato é que, se em “O Galante Mr. Deeds”, cada injustiça é contraposta à retidão do seu protagonista, em “Adorável Vagabundo” a equação é invertida: para cada ato justo, há um vigarista disposto a torná-lo lucrativo. 

Ainda comparando os dois filmes: poderia esta amargura explicar a estilização mais marcada deste segundo longa? Em “Mr. Deeds”, Cooper aparece frequentemente isolado no quadro – seja por algum objeto na composição pictórica, seja pela sua disposição em relação aos outros personagens -, enquanto a mise-èn-scene em si não foge do “naturalismo” hollywoodiano à moda antiga. Já aqui, o próprio quadro se anuncia instável, perigoso: repare na luz não-diegética que ilumina os olhos vidrados de Barbara Stanwyck, no plano holandês que a recorta debruçada sobre a máquina de escrever. O mundo está em desequilíbrio. 

Cinismo presciente

Stanwyck é a repórter que, após ser chutada do jornal, resolve redigir uma falsa carta sobre um Zé Ninguém, que teria ameaçado se matar como um protesto ao estado das coisas. Quando a suposta carta é publicada, cria-se um frenesi midiático em torno da figura anônima, que parece capturar uma certa revolta popular em ebulição. Cínica (ou desesperada por dinheiro), ela logo se junta ao jornal em uma tentativa de fabricar esse tal Zé Ninguém (ou o “John Doe” do título original). 

Entra em cena Gary Cooper, um andarilho que logo se torna uma espécie de porta-voz do povo. Enquanto a mídia maquina a melhor forma de lucrar com a situação, o magnata D. B. Norton (Edward Arnold, absolutamente sinistro e imponente) logo pensa em como usar aquela figura para os seus interesses próprios. 

O roteiro de Riskin começa na quinta marcha, a ponto de você se perguntar se está assistindo a uma screwball comedy. Mas quando a lição de moral sobre a ganância desponta no horizonte, você entende que “Admirável Vagabundo” é uma típica dramédia Capriana. Nada de mal nisso: não só cada plano é prenhe de textura e de sentidos (o relógio imponente atrás de Arnold, por exemplo, seu pêndulo vagaroso), como a temática da exploração comercial de um senso de revolta parece preceder em três décadas o clássico “Rede de Intrigas”. 

Muito também já foi dito sobre o filme ser excessivamente verborrágico, e há verdade aí. Mas, quando você tem um time de artífices que sabe exatamente o que faz na frente e atrás das câmeras, de que importa? Deixe que os personagens “monológuem” o quanto quiserem: o texto é bem escrito, os atores dão tudo de si e Capra sempre arruma uma forma interessante de tratar a coisa visualmente. Assim, em uma cena, Cooper se lança em um solilóquio de costas para a câmera, enquanto Stanwyck arruma suas coisas no fundo desse plano aberto; em outro, ele mantém a câmera no rosto de James Gleason por bem mais tempo do que seria de se esperar, enquanto o ator usa todas as suas armas num monólogo emocionado. 

E há, no centro de tudo, o rosto de Gary Cooper. Altivo, bem delineado, seu rosto é uma espécie de muro branco, impassivo frente ao tempo e à chuva, onde a menor fissura logo se faz ver – um arquear de sobrancelhas, um olhar confuso. Entende-se, portanto, porque ele soube encarnar tão bem em seus faroestes a figura do “homem forte e silencioso” (nas palavras imortais do Bardo, Tony Soprano). Mas, o mais surpreendente e arrebatador de tudo: apesar de toda a dureza, ele sabe ser um bobalhão – e um bobalhão apaixonado, ainda por cima. 

Mas isso é fácil quando se contracena com Barbara Stanwyck. Ela tem olhos capazes de fazer qualquer homem cair de joelhos. Claro que eu também faria tudo que Barbara Stanwyck me mandasse.