Entre a última pá de cal que “Hello, Dolly” representou e os primeiros versos de “Nature Boy” que anunciavam o renascimento do musical com “Moulin Rouge!”, o subgênero viveu décadas curiosas em Hollywood. Se a Era de Ouro ruiu para dar espaço à Nova Hollywood, as produções em grande escala deram lugar a títulos mais intimistas, que conversavam com uma indústria que parecia ter um pé mais fincado em pautas que o Código Hays antes nunca permitira.

“Hair”, o sucesso posterior de “The Rocky Horror Picture Show”, “A Pequena Loja dos Horrores” e a transgressão de John Waters em “Cry Baby” eram símbolos desse movimento não oficial, enquanto “Grease – Nos Tempos da Brilhantina” atualizava os códigos da Hollywood clássica, e projetos ambiciosos como “Evita” pareciam cada vez mais espaçados.

No meio disso tudo, a potência de Bob Fosse em várias frentes do entretenimento parecia criar uma ponte entre o cinema que o formou e o discurso de uma juventude que produzia sub a nuvem do trauma da Guerra do Vietnã. Uma divina decadência que não poderia resultar em outra coisa que não “Cabaret”, filme que completa 50 anos em 2022.

Se você chegou até este texto, provavelmente já conhece a história: um jovem britânico se envolve com uma cantora norte-americana na Berlim de 1931 em meio à ascensão do partido nazista. Um terceiro elemento logo se junta e, enquanto eles descobrem e se descobrem, inserções no clube onde a protagonista Sally Bowles (Liza Minnelli) se apresenta ajudam a emoldurar a história.

No palco do cabaré, um mestre de cerimônias (Joel Grey) nos guia em números que dialogam com o que acontece fora daquelas paredes. Não muito diferente do que Fosse traria em “Lenny”, dois anos depois, com as apresentações de stand up comedy do personagem título, vivido ali por Dustin Hoffman.

Em “Cabaret”, essa colcha de retalhos é costurada das boas vindas com, bem, “Wilkommen” a canções que fazem comentários ácidos, como “Money” e “Two Ladies”. Tudo é acompanhado pelos movimentos que fizeram de Fosse uma lenda do musical não apenas pelo seu trabalho na cadeira de diretor, mas, principalmente, enquanto coreógrafo. Curioso que sua musa inspiradora seja justamente Minnelli, que carrega em seu DNA a herança de dois nomes que ajudaram a moldar o tipo de musical que, por décadas, era a coqueluche daquela indústria (para os mais desavisados, sempre bom ressaltar que Liza é filha de Judy Garland e Vincente Minnelli).

“Todo mundo ama um vencedor, então ninguém me ama”

A Sally deste “Cabaret” tem uma presença tão forte que sua imagem em cima da cadeira, dançando e cantando “Mein Herr”, virou sinônimo de sua intérprete. Totalmente distante da ideia de que a personagem não deveria ser a melhor das cantoras, Liza se entrega de corpo e alma à pele dessa mulher que não sabe ser misteriosa, mas que tem sonhos de ser Marlene Dietrich e que, todas as noites, canta no Kit Kat Club com o delírio de que, tal qual a atriz alemã, será descoberta e virará uma estrela das telonas. O cabelo que emula Louise Brooks ganha a rebeldia da franja pontuda (sugestão de Liza), e os passos conseguem ser precisos e desengonçados ao mesmo tempo.

É no palco que esses delírios de Sally ganham forma. Lá, ela brinca de ser a vencedora que não consegue ser na vida real. Enquanto a Charity de Shirley MacLaine comemora o amor conquistado com euforia, a melancolia dá o tom de “Maybe This Time”, a canção de Bowles sobre talvez conseguir algo na vida, enfim.

De todo modo, o filme não esquece que o trisal formado por ela, Brian (Michael York) e Maximilian (Helmut Griem) é imperfeito, mas o retrata com a aura de brevidade que também pairava pelas ruas daquela Berlim. O mundo dos três personagens é íntimo, com closes e quadros inebriantes, e parece estar prestes a quebrar a qualquer momento.

E de fato quebraria. O mundo que eles conheciam já dava sinais de que iria mudar bruscamente, e que outsiders como eles não seriam bem-vindos ali. Sally cria seu trevo de quatro folhas, mas não é capaz de mudar a sorte. Debaixo dos seus narizes, o partido nazista já ensaiava uma brusca tomada de poder, que o filme de Fosse retrata em uma de suas sequências mais emblemáticas, que mostra a ascensão da extrema direita com um tom que vai da inocência ao macabro em questão de segundos, em uma crescente que assusta e cede passagem para os novos tempos.

No fim das contas, o cabaré se torna refúgio, onde nos escondemos e vivemos novas possibilidades. O mestre de cerimônias indaga onde estão nossos problemas agora. É uma provocação. É a arte que nos eleva, que nos cura, que faz Sally Bowles levantar novamente e cantar que a vida é um cabaré.

MAIS CLÁSSICOS NO CINE SET