Um filme com tintas autobiográficas produzido pela endeusada A24 e distribuído pela Mubi tem tudo para ser um dos queridinhos indie da temporada, estreando aqui no Brasil na Mostra de SP. Mas para além dos rótulos, “Aftersun” é a carta de apresentação da escocesa Charlotte Wells, uma cineasta emotiva, criativa e sem receio de soar pedante.  

O filme reverbera em filhas, filhos, mães, pais ao cartografar de forma imagética e singela o vínculo entre um jovem pai, Calum (Paul Mescal, absolutamente iluminado) e a pré-adolescente Sophie (outro debut maravilhoso de Frankie Coro). Eles estão em um resort na Turquia, região da Capadócia, onde mantém a tradição anual de tirar férias juntos. Wells promove um loop temporal de 20 anos, remontando ao verão inesquecível e ao presente de Sophie, que revisitando fitas VHS, tenta entender melhor quem era o pai.  

O dispositivo de fabulação que se constrói no recurso da câmera VHS denota alguns dos momentos mais inventivos e catárticos de “Aftersun”; seja quando Calum pratica seu tai chi e Sophie, como qualquer criança de 11 anos, faz comentários engraçados e chama o pai de bobo ou quando ela pergunta sinceramente e ingenuamente como ele se sente. O jogo entre o espelho, a tela da tv e a imagem distorcida, os ruídos de comunicação e sentimentos que transbordam magnetizam espectadores do lado de cá.  

A filha-narradora (que quando adulta, em breves lampejos ensaisticos, é vivida por Celia Rowlson-Hall) vai, ao longo dos dias de sol passados na praia, na piscina e no quarto especialmente, descobrindo o desejo, deixando a puberdade entrar em consonância com a infância que seu corpo ainda carrega. É “Aftersun” de certa maneira um conto coming of age sobre a formação da personalidade de uma menina ligada ao pai. E que bom que Wells sustenta sua narrativa em uma relação saudável entre pai e menina, num mundo tão cão onde uma cena em que os dois dividem a cama já provoca sobressaltos e pesadelos a lá “rolou um clima”.  

Amor é a coisa mais importante que temos 


Paul Mescal (“Normal People”) mais uma vez parte corações com sua caracterização amorosa de Calum, um pai devotado, amigo mas profundamente atormentado. Quando ele se prepara para mergulhar com Sophie, confidencia a um dos instrutores que jamais se imaginaria chegando aos 30 anos. Seja no que diz, mas, especialmente nos silêncios, no olhar, no vagar e no choro incontido que, quando Sophie não está perto, brota e inunda, é inebriante e desoladora a maneira com que o ator se apropria do seu personagem.  

A fofíssima Frankie Coro entrega muita verdade na pele de Sophie, além da sinergia entre ela e Mescal. É prazeroso e melancólico acompanhar os dias de sol ao lado dos dois, além dos diálogos que ilustram o quanto o amor filial e a fraternidade são coisas tão importantes, mas que estão meio que sublimadas hoje.  

Melancolia, luto e júbilo já eram sintagmas simbólicos presentes no primeiro curta de Wells, “Tuesday”, que também traz uma relação entre pai e filha que é estilhaçada pela vida. Wells atraiu a atenção de ninguém menos do que Barry Jenkins (“Moonlight”), que junto a sua sócia na Pastel, Adele Romanski, produz “Aftersun”.  

Canções emblemáticas dos anos 90 permeiam a narrativa, dando conta de trazer para fora a subjetividade aflorada de Calum e Sophie. Como “Tender”, da banda Blur (especialmente no trecho “Tender is the touch of someone that you love too much/Tender is the day the demons go away/Lord I need to find someone who can heal my mind”), “Losing My Religion” na cena do karaokê ou “Under Pressure” na sublime sequência de dança – “And love dares you to change our way of Caring about ourselves”; é a música como elemento narrativo cristalizando ainda o espírito daquela época e a emoção que circunda os personagens.  

Em entrevista ao LA Times, Wells, que tem apenas 35 anos e é radicada nos Estados Unidos, fala que “Aftersun” é “emocionalmente autobiográfico”, e a maneira que ela costura seu enredo às reminiscências do afeto entre pai e filha, dificilmente deixará alguém equânime. Aqui, eu abro uma pequena aspas para dizer que, como uma filha de um pai que partiu jovem, e que tínhamos o costume de rotineiramente viajar apenas nós dois, para estreitar esse laço que prende pais e filhas, que afeta inclusive a maneira com que enxergamos os homens e significa ao deixar marcas para o resto da vida nas mulheres que somos, fui atingida no aspecto nostálgico e mágico em igual simetria por “Aftersun”.