Há uma tensão imperceptível presente em aspectos cotidianos de “Que Horas Ela Volta?”. O sorvete, o ventilador, a louça, a mesa de jantar, a piscina formam códigos silenciosos de barreiras de classes sociais. De tão arraigados na sociedade brasileira, porém, chegam a soar naturais para os dois lados da moeda. Basta, entretanto, um elemento externo para mostrar a fragilidade daquela realidade.

O primeiro elemento de combustão são as escolhas da diretora Anna Muylaert. Vinda de trabalhos competentes nos ótimos “Durval Discos” e “É Proibido Fumar”, a cineasta poderia ter adotado a linha incendiária vista nas redes sociais de ataque frontal a tudo e a todos. Afinal de contas, o tema da empregada doméstica no Brasil obedece a certas regras ultrapassadas e, por vezes, preconceituosas, que resvalar para o radicalismo acaba sendo uma doce tentação. O talentoso Gabriel Mascaro que o diga no polêmico “Domésticas”.

Que Horas Ela Volta?, com Regina CaséMuylaert vai, entretanto, por outra linha: cabe às imagens, e não ao discurso, construir a realidade de Val, empregada doméstica de uma família rica do Morumbi. Todo o desenvolvimento de uma mulher pernambucana sem vida própria, abdicando inclusive da própria filha e marido, traz a personagem, na verdade, como o grande esteio e centro dos moradores da casa, sendo a única capaz de dialogar e ouvir a todos.

Os códigos silenciosos, porém, estão lá estabelecendo a diferença entre ela e os donos da residência. Val e todas as outras empregadas domésticas presentes em “Que Horas Ela Volta?”, aliás, obedecem essas ‘leis’ invisíveis como se fossem naturais, como se tivessem nascido para essa missão na Terra. O roteiro do projeto escrito por Muylaert e Regina Casé mostra como principal acerto não vitimizar e transformar essas profissionais como pobres coitadas, sacrificadas pela elite branca e qualquer outro xingamento clichê das redes sociais; ressalta-se, sim, o aspecto de guerreira, forte e firme dessas mulheres presentes no cotidiano de milhões de casas Brasil afora.

A própria Casé utiliza o seu conhecido bom humor para amplificar isso em uma atuação tão marcante quanto a de Fernanda Montenegro em “Central do Brasil” e Wagner Moura em “Tropa de Elite 1 e 2”.

Camila Márdila, em Que Horas Ela Volta?Eis, então, chegada a hora do segundo elemento de combustão: Camila Márdila. O terreno preparado por Muylaert durante aproximadamente 30 minutos para a chegada da garota vinda de Recife para prestar vestibular em São Paulo deixa claro que ela será o ponto de transformação da trama.

A adolescente Jéssica representa não apenas a inquietude natural do jovem, mas traz sim a força de um novo Brasil, o qual busca quebrar paradigmas, que não aceita mais tão fácil os códigos silenciosos e supostas condições naturais. Por que não usar um quarto grande se ele está desocupado? Por que não sentar ao lado do dono da casa? Por que não cair na piscina? Por que não ser possível passar no vestibular? Contar com uma jovem cheia de energia e forte presença de cena como Márdila contribui para tornar crível essa realidade.

Tudo isso, por incrível que pareça, feito sem discursos radicais. Não há, ao contrário do que aconteceu no bom “Casa Grande”, discursos políticos, sociais e engajadoras de lutas contra a elite ou quem quer seja. Exceto pela dona da casa Bárbara (Karine Teles) – flerte perigoso do filme com as críticas pobres das redes sociais ao caracterizá-la quase como uma vilã de novela – todos os outros dois personagens do núcleo rico possuem ambiguidades e vão além de serem caricaturas. Destaque para o misterioso Carlos (Lourenço Mutarelli, ótimo) que, apesar de atitudes questionáveis em muitos momentos, parece carregar uma culpa enorme nas costas por erros não revelados.

Por fim, o terceiro ponto de combustão é o espectador. Quanto nos acostumamos com o universo trazido por “Que Horas Ela Volta?” a ponto de questionar a realidade vivida por todos nós?

Assim como aconteceu com “O Som ao Redor” ao tratar sobre a especulação imobiliária nas grandes cidades e as milícias, há uma sensação de que perdemos a capacidade de olhar para os nossos problemas mais internos. Tomara que esteja enganado, porém, muitas das feridas mexidas por Anna Muylaert e Kleber Mendonça Filho devem passar batidas pela maioria dos espectadores.

Isso para não falar da falta de acesso a quem justamente aborda o filme: chega a ser irônico assistir “Que Horas Ela Volta?” em shoppings centers, locais onde empregadas domésticas são tratadas, muitas vezes, com os códigos silenciosos vistos na produção.

Debater se vai ou não levar o país a vencer a primeira estatueta do Oscar torna-se pequeno perante a grandeza do filme. “Que Horas Ela Volta?” se mostra uma obra inteligente capaz de discutir o Brasil com sensibilidade e clareza muito além da lenga-lenga maniqueísta PT-PSDB ou Aécio-Dilma ou FHC-Lula. Não significa, entretanto, ser uma produção apolítica; porém, não adota um tom professoral, muito menos doutrinador.

Um sopro de inteligência para o período em que, apesar da gritaria generalizada, os códigos silenciosos são reduzidos a passos lentos.