David Lynch é um dos poucos diretores que melhores absorveram as entranhas da América para investigar a partir de um ponto de vista excêntrico, os subterrâneos morais da sociedade norte-americana. É um dos grandes visionários da sétima arte a pensar a experiência cinematográfica fora da sua caixinha convencional, mergulhando seus trabalhos em um universo surreal que transcende muitas vezes os sentidos, as fantasias e os desejos. 

Coração Selvagem é o filme-síntese deste estilo autoral e inquietante do seu cineasta, uma obra que abraça diversas convenções narrativas para renovar a linguagem cinematográfica nos meados dos anos 90, a partir de um cinema limítrofe, assimilando os contrastes existentes entre a ilusão e a realidade para discutir o processo da sanidade-loucura que habita o mundo interior e externo da natureza humana. 

A história de Sailor (Nicolas Cage) e Lula (Laura Dern), um jovem casal que decide viajar pelos Estados Unidos para fugir da perseguição da mãe da garota, Marietta (Diane Ladd que fora das telas é mãe de Laura) que contrata assassinos de aluguel para matar o rapaz, é a olho nu o fio condutor para Lynch destilar o seu enorme talento em se apropriar dos clichês característicos do filme noir, do road movie, do horror e do romance apenas para subvertê-los dentro do seu universo caótico.

A América das Aparências

No início da década de 90, Lynch encontrava-se no seu auge de realizador. Já tinha um certo reconhecimento da indústria cinematográfica americana nos meados de 86 graças a Veludo Azul, um trabalho provocativo indicado ao Oscar do ano seguinte, ao mesmo tempo que a série Twin Peaks operava uma grande revolução na televisão americana. 

Realizado durante as gravações da série, Coração Selvagem é o seu apogeu, inclusive faturou a Palma de Ouro de Cannes na época. É um filme que opera por um campo novo e fértil de significados no que consiste reunir o maior número de simbologias excêntricas para apresentar uma história de amor bastante peculiar, completamente fora dos parâmetros convencionais. 

Lynch faz um exercício narrativo criativo emoldurando a saga de Sailor e Lula como um conto de fadas subversivo – uma ode ao clássico O Mágico de Oz que tentarei explicar melhor logo mais -, cheio de situações estranhas acontecendo em torno dos personagens e um jeito de viajar nelas para entender aquele universo de aparente felicidade da sociedade americana, mas que apenas encobre, nas suas entrelinhas, um mundo caótico regido pela maldade, escuridão e loucura, onde a violência é visualmente exagerada para destacar imagens ao extremo. 

É de certa forma na pura essência, o cinema atômico de Lynch na sua filmografia por desvendar as crises de identidade de uma América profunda para discuti-la a partir de um quebra-cabeças de imagens e sons em que a dicotomia entre o mundo interno e externo são fatores imprescindíveis para compreender uma geração desequilibrada em seus conceitos e valores. 

Enquanto o casal viaja, faz sexo e compartilha seu passado marcado por traumas e desilusões, o cineasta ironiza o culto das aparências para revelar as máscaras da hipocrisia, das aparências e dos jogos sociais.

A carnalidade da redenção

Em um mundo dominado pela questão do grotesco e de contrastes, a jornada surrealista de dois jovens amantes pelo subconsciente humano da América fronteiriça, faz que Coração Selvagem estabeleça um ritmo leve e dinâmico para construir um divertido conto de amor que versa sobre redenção. 

Lynch também mantém sua estranha obsessão pelas alegorias como fogo, carros, estradas, mundos distintos – onde o mal tenta corromper a bondade humana -, para fazer sua metáfora sempre eficaz de seus protagonistas sem rumos, caminhando pelas estradas da vida, mergulhando dentro de suas dúvidas para acessarem o prazer mais íntimo de seus desejos. É como se a ausência dos desejos mais duradouros os levasse a se tornarem reféns dos seus prazeres mais efêmeros. 

Outra coisa que dá para perceber em Coração Selvagem é o quanto o amor entre o herói (Sailor) e sua heroína (Lula) funciona como espaço adequado para mostrar que os dilemas emocionais do casal em meio ao caos urbano – marcado por uma mãe controladora e assassinos grotescos – serve de descoberta para a existência de um mundo adulto alimentado pelo desnudamento das emoções, das angústias e medos. A relação de Sailor e Lula é sempre filmada pelo diretor a partir do amor físico, do orgasmo no sentido mais carnal possível aquele que permite a redenção. A fotografia de cores quentes, entre o vermelho e o amarelo alude bem o relacionamento intenso do casal. 

O mágico de Oz pela ótica Lynchiana e seus excessos

Lynch propõe em Coração Selvagem um filme bruto em todos os sentidos, onde o amor de Lula e Sailor precisa enfrentar a loucura e as violências de uma realidade externa que deturpa a inocência. Ainda assim, existe um toque emocionalmente pulsante para lidar com este contexto com o diretor se apropriando do clássico Mágico de Oz para traçar a cerne principal da simples história de amor do casal. 

A estrada que eles viajam é nada mais do que a estrada de tijolinhos dourados do filme musical. Nela, Lynch mostra que o tesouro além do arco-íris nada mais é do autodescobrimento de Sailor e Lula na busca por um lar – ambos vêm de famílias desestruturadas – pela felicidade e por um amor que mesmo proibido pelas amarras familiares e sociais é a única ferramenta para a redenção deles. O cineasta tem um estilo muito próprio de contar que este caminho percorrido, se resume a busca da liberdade individual de cada um para contornar um mundo pervertido e insano. 

A própria figura de Marietta representa a Bruxa Má do Oeste por toda sua inveja, ciúme e ódio em relação ao amor do casal; o tornado é simbolizado no fogo e incêndio, ambos relevantes em relação ao passado de Lula e a postura covarde de Marcelle Santos representa a figura do Mágico de Oz. 

Uma pena que uma história clássica e linear para um autor fora da caixa como Lynch se perde em certos excessos. Coração Selvagem se arrasta por ter várias subtramas relacionadas aos seus vilões que pouco acrescentam a saga do casal. Apesar de gostar muito do divertido Bobby Peru de Willem Dafoe e de Marietta de Ladd, a presença dos demais antagonistas são desperdiçadas, já que a grande maioria aparece e desaparece deixando a sensação de não serem aproveitados suficientemente bem pelo roteiro. 

Falta ao filme explorar melhor essa galeria de vilões, que apesar de ganharem uma roupagem divertida, apresentam poucas motivações que enriqueçam a saga de Sailor e Lula. Falando neles, Cage personifica com uma ampla irreverência a visão surrealista do que seria Elvis Presley na mente de Lynch. Ele transita muito bem entre o estilo explosivo e sentimental de Sailor, enquanto ela mostra toda a sua força na dualidade da sua personagem, sendo sexy e infantil quando necessário. Não é à toa que a cena capital final regida ao som de Love me Tender de Elvis entre os dois é de encantar o coração. Por fim, vale destacar atuação dissimulada com diversas marcas cômicas de Dianne Ladd, que praticamente estrutura o contexto da loucura no texto do filme através das ações da sua personagem. Sem dúvida, do elenco coadjuvante é a personagem mais bem construída em cena, cuja atuação caricata contribui par deixar sua Marietta hipnotizante. 

No fundo, perto dos outros filmes que David Lynch fez antes – Veludo Azul é o meu favorito ainda do diretor – e depois, Coração Selvagem é um filme menor perto da consistência das obras-primas lançadas pelo diretor. Isso não tira a sua força por ser, talvez, o seu trabalho que melhor executa o seu cinema limítrofe em flamejar o que é real e o que é surreal. 

Lynch dentro da sua história de amor faz uma viagem íntima e excêntrica pela busca do amadurecimento pessoal. É nesta jornada de jovens apaixonados que temos a exposição de um mundo selvagem por dentro e tão estranho por fora. Uma ode à música, à juventude e ao amor selvagem, sintetizando uma aventura perigosa (e fascinante) pela aprovação pessoal e realização de desejos.