“Dao khanong”, da diretora Anocha Suwichakornpong, foi o filme selecionado pela Tailândia para concorrer a uma vaga na categoria de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar 2018. Assim como o nosso “Bingo: o rei das manhãs (2017), o longa não continuou na disputa na medida em que a lista foi afunilando. Porém, tanto quando o brasileiro, o filme merece uma conferida atenta.

“Atento”, aliás, é um bom termo para descrever o espírito do espectador ao ver “Dao Khanong”. O motivo é que o longa de Suwichakornpong parece beber de fontes deveras curiosas: encontramos, no mínimo, ecos do cinema de seu conterrâneo Apichatpong Weerasethakul, do coreano Hong Sang-Soo e do americano David Lynch na mistura de elementos fantásticos a propostas cinematográficas ousadas. Longe de virar uma mistura sem identidade, “Dao Khanong” mostra o pulso de sua diretora, um feito e tanto para tamanha ambição no segundo longa-metragem da filmografia da tailandesa.

Descrever a trama de “Dao Khanong” começa fácil, mas vai se complexificando mais pra frente. O filme inicia com a chegada da diretora Ann (Visra Vichit-Vadakan) e da ativista Taew (Rassami Paoluengtong), sobrevivente de um massacre de estudantes durante um protesto conta o governo nos anos 1970, num hotel longe dos centros urbanos. Ali, Taew começa a contar sua história, que servirá de base para o roteiro do próximo filme de Ann. A narrativa é entrecortada pelo que o espectador pode entender ou como flashbacks, ou como Ann imagina que filmará os fatos, ou como o filme de Ann ficou em sua forma final.

Não nos é dada resposta definitiva sobre essas três possibilidades. Aguça-se apenas o papel fragmentário do que é relatar a História e, curiosamente, o quão cheio de lacunas é a construção fílmica. Essa ideia-guia é sutilmente reforçada ao longo da primeira metade do filme, como vemos, por exemplo, quando Ann afirma que quer filmar a história de Taew por vê-la como “história viva”, alguém que fez algo marcante e que influenciou mudanças no mundo, ao passo que a ativista argumenta que é apenas uma “sobrevivente”. Resumindo: tudo é questão de ponto de vista, de como se olha para algo e de como esse algo é mostrado. O reforço retorna no diálogo entre Ann e uma garçonete que acredita que Taew é que deveria escrever o roteiro de sua vida, ao invés de esperar que outros saibam melhor contar a história.

A perspectiva do contar (e, por conseguinte, do consumir) é posta em evidência o tempo todo. Na sequência em que vemos Ann encontrar um cogumelo exótico, por exemplo, “Dao khanong” ganha ares alucinógenos. A alteração de seu estado de consciência é também colocada como metáfora para as formas diversas de se entender e ver representada a realidade. Curiosamente, o fato de o filme girar indiretamente em torno de um fato histórico e da tentativa de reconta-lo acaba se relacionando a essa “viagem”, uma vez que qualquer tentativa de registro do passado é, antes de tudo, ressignificação, uma espécie de realidade alternativa, ainda que em busca de uma fidelidade aos fatos passados.

O próprio título do filme firma essa posição dúbia. Segundo a diretora, o termo “Dao khanong” designa um distrito afastado de Bangkok, uma área periférica na qual não necessariamente se “chega a algum lugar”; logo, o importante é o trajeto, não o destino, e no caso da criação cinematográfica, podemos pontuar que mais importante que entender o filme, é fruilo. A partir da segunda metade do longa, fica ainda mais claro como a entrega do espectador à atmosfera é provavelmente mais importante que a busca por uma compreensão linear de “onde esse filme quer chegar”: acompanhamos, por exemplo, uma reinterpretação da cena inicial, na qual a diretora e a ativista chegam à casa onde acontecerão as entrevistas.

Dessa vez, porém, tudo é como que sanitizado: outras atrizes as interpretam (mais “bonitas”, de pele mais branca e roupas mais bem cortadas), as falas são levemente modificadas para serem mais expositivas, a fotografia se ilumina um pouco mais. O tom a princípio naturalista de “Dao khanong” entrega, nesse momento, seu caráter de construção. Na medida em que o filme avança e passamos a acompanhar um camponês que, na verdade, é um ator e cantor famoso interpretando vários papeis, a questão da estruturação do filme salta aos olhos para além da montagem.

Elementos simbólicos mais profundos são, assim, apresentados: o ator, Peter (Arak Amornsupasiri) grava cenas de um romance, do que parece ser um videoclipe e visita um simulador de voo. Em todos esses momentos, ressoa o duplo dessas atividades – atuar não é viver, mover os lábios não é cantar e comandar um game elaborado não é pilotar um avião. Tem-se ainda a presença recorrente de Atchara Suwan em vários papeis, de uma garçonete já citada, que confronta Ann sobre deixar Taew contar sua própria história, até uma monja budista de cabeça raspada.

Sem spoilers, mas o final do longa evidencia de forma extrema o caráter quase que de quebra-cabeça do ato narrativo, fazendo-nos pensar mesmo na questão da digitalização cada vez mais imperativa da imagem. Liga-se, assim, de maneira nada óbvia à incapacidade de se contar fielmente o uma história (ou, no caso de Ann e Taew, o passado), assim como a necessidade de seguir resistindo para que histórias necessárias não se apaguem e se percam no tempo. Ainda que não se delongue explicitamente no acontecimento que dá ignição à toda a trama, o massacre real de estudantes nos anos 1970, “Dao khanong” acaba falando tanto sobre política e memória quanto se fosse um filme meramente expositivo.