“Eles farão dos cemitérios as suas catedrais, e das cidades os seus túmulos” (Nostradamus)

No mundo artístico, o ditado popular “filho de peixe, peixinho é” ganha um peso enorme principalmente quando comparamos intérpretes ou diretores com seus respectivos progenitores ou parentes famosos. Por isso, tente se colocar no lugar de um italiano chamado Lamberto Bava. Seu pai é nada menos que Mario Bava um dos grandes mestres do horror italiano, responsável pelo surgimento dos Giallos e Slashers. Ainda que carregue uma grande responsabilidade nas costas, Bava (o filho) dirigiu um dos trabalhos mais insanos e divertidos da década de 80: Demons – Filhos das Trevas (1985). Você pode até considerá-lo trash, longe de ser um dos melhores filmes do cinema italiano de horror, mas é inegável o quanto ele é divertido e vibrante.

Este ano, ele completa 30 anos de lançamento e continua uma obra dinâmica e intensa. É uma verdadeira homenagem (e curtição) ao cinema B de horror. A trama simples culmina em um espiral de diversão: um grupo de pessoas – cada um com aquela personalidade típica de filme B – é convidado para assistir um filme no cinema. Ao chegar ao local, eles se dão conta que a película é de terror cujo enredo é sobre um grupo de jovens perdidos nas ruínas de um castelo na qual está localizado o túmulo do profeta Nostradamus. Um deles encontra uma máscara estranha e ao colocar no rosto sofre um corte que infecciona e o transforma em um demônio que passa a perseguir os amigos. O problema é que o filme assistido se transforma em “realidade” e uma praga demoníaca ataca os personagens que estão no cinema.

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Demons faz parte de um seleto quarteto informal repleto de exageros e escatologias iniciada em Evil Dead (1981) de Sam Raimi, sedimentada por Re-Animator (1985), de Stuart Gordon e finalizada em Fome Animal (1990) de Peter Jackson. Lançado no mesmo ano que o filme de Gordon, o trabalho de Bava é considerado a versão italiana de Evil Dead, não apenas pelo gore (violência gráfica exagerada) como trabalha com a temática de demônios (ainda que guarde também certas similaridades com a fórmula apocalíptica dos filmes de zumbis) além de outras referências ao filme de Raimi, como o herói pateta no melhor estilo Ash de Bruce Campbell.

Mas dizer que o filme é apenas uma mera cópia do americano seria desvalorizar o trabalho de Bava. Até porque Demons tem vida própria, com boas surpresas principalmente no roteiro que por sua vez foi escrito pela melhor nata do cinema carcamano: Dario Argento, Franco Ferrini e Dardano Sachetti. Em vários momentos, ele pouco se leva a sério e a impressão no contexto geral é de ser uma verdadeira brincadeira com as situações e clichês do cinema de horror.

E vamos ser francos, onde mais você encontra um filme de baixo orçamento que realiza um divertido exercício de metalinguagem (o filme dentro de um filme)? Se você pensou que Pânico de Wes Craven foi o pioneiro neste tipo de filme, enganou-se totalmente até porque Demons é o verdadeiro precursor no segmento. Ele é hábil na construção da premissa para destilar a violência gráfica de mutilações e escatologias. Mistura as imagens do filme exibido com aquelas que nós espectadores (eu e você) estamos assistindo, em uma sacada muito bem realizada pelo diretor que encontra na montagem um ótimo aliado para brincar com a fronteira entre real e imaginário, ao passo que presenciamos e assistimos as cenas que acontecem no filme semelhante às cenas assistidas pelos personagens no cinema.

O grande momento de Demons é quando uma das personagens contaminadas (uma prostituta) fica atrás da tela do cinema e tenta de todas as formas rasgá-la para pedir ajuda. Bava neste momento faz um ótimo exercício de tensão ao mesclar esta cena com a do filme exibido, onde uma mulher também se esconde em uma barraca enquanto o assassino tenta entrar. É uma aula de metalinguagem até porque enquanto uma tenta romper a barreira que a separa da ajuda (no caso a tela de cinema), a outra está presa dentro da barreira (uma barraca) sem qualquer perspectiva de salvamento. Para adicionar mais tempero a sequência, os gritos de socorro da prostituta se confundem com o da atriz do filme apresentado. Por fim, há o rompimento da tela de cinema pela prostituta e o terror é espalhado no cinema do filme que assistimos. É sem dúvida, o auge de Demons onde fica evidente o discurso metalinguístico do roteiro por meio da ruptura entre o real e o fantástico, da perda da coerência narrativa em prol da atmosfera de horror – e sem qualquer lógica. Exalta o potencial criativo do texto.

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As brincadeiras ou referências ao gênero de terror também não foram esquecidas: A sequência de abertura do filme brinca ironicamente com os Giallos italianos, onde a insinuação de um assassinato prestes a acontecer é apenas uma enganação por parte do diretor.  Outra boa sacada do roteiro remete aos filmes dos Zumbis, onde geralmente os personagens tentam  isolar o local onde estão para impedir a invasão das criaturas. Em Demons acontece justamente o contrário: os vivos tentam a todo custo fugir do local onde estão, mas não conseguem, pois o lugar foi vedado sem possibilidade de acesso a realidade externa do cinema. Para completar, Bava presta uma linda homenagem a Suspiria (1977) de Argento em uma sequência na qual a fotografia mistura tons avermelhados e azulados enquanto cortinas vermelhas envolvem de forma claustrofóbica uma determinada personagem. Até a cavalaria esperada pelos personagens para salvá-los foge do convencional, onde punks drogados aparecem como únicos heróis.

Os efeitos especiais de Sergio Stivaletti continuam caprichados e relevantes. Abusa de sangue, pus e feridas pestilentas, mostradas sem qualquer cerimônia. A maquiagem ajuda a dar estilo nas cenas – há uma famosa cena onde os demônios sobem as escadas dos corredores escuros do cinema, com os olhos iluminados. A trilha sonora é regada ao melhor Hard Rock de Billy Idol a Saxon o que dá mais visibilidade a trilha instrumental Claudio Simonetti, ex-integrante da banda Goblin que imortalizou diversas obras de terror do cinema italiano.

Tem uma série de problemas, o principal é quando Bava quebra o ritmo do filme com uma subtrama que acontece fora do cinema (a dos punks drogados) que serve apenas para aumentar o tempo de duração do filme, sem contar os diversos erros de continuidade. Mas isso pouco importa quando você fecha a conta e pede a fatura. Gerou uma continuação no ano seguinte, Demons 2 (1986)  que mesmo divertida e mais exagerada (acontece em um condomínio fechado de prédios) não tem a criatividade do primeiro.

É uma obra que mesmo passados trinta anos, continua um dos trabalhos mais divertidos do cinema italiano. Foi o único de destaque na filmografia de Lamberto Bava que dirigiu diversos giallos eficientes, mas longe de qualquer brilho sendo a maioria esquecível. Demons – Filhos das Trevas é um espetáculo regado a muita overdose de sangue, gosmas e tripas. A palavra entretenimento descompromissado casa perfeitamente com a essência do filme. Por fim, a famosa frase de Nostradamus que abre esta crítica poderia muito bem ser adaptada “Eles farão do cinema extremo as suas catedrais, e da diversão os seus túmulos”. Eles, no caso são Bava e sua trupe italiana que fazem desta preciosidade, uma obra cheia de energia, ótima para conferir com amigos e se divertir com os absurdos proporcionados por ele.