Se há algo que é forte nas obras de Stephen King é a sua belíssima capacidade de transformar situações normais e inofensivas em algo assustador. Explorar personagens comuns como eu e você em situações de extremo pavor e medo sempre foram a cereja do bolo na maioria das suas histórias. Cujo, o seu 10 º romance lançado em 1981, é considerado por mim, a melhor síntese desta idéia em relação ao escritor: ele torna a afável figura de um cão São Bernardo em algo assustador, um ser diabólico que assombrou uma geração inteira.

Vi primeiro o filme lançado em 1983, uma produção modesta, dirigida pela competente Lewis Teague ainda na minha infância, o que me proporcionou algumas noites muito mal dormidas. Só vários anos depois, já na fase adulta, li o livro pela primeira vez. Como revi o filme para este Especial de Terror do Cine Set, posso dizer com total tranqüilidade: filme e livro são bem equivalentes, com o primeiro sendo uma adaptação bem fiel do segundo, retirando só o elemento sobrenatural e mudando o final que na obra literária é bem mais pessimista. Gosto do romance escrito por King e a adaptação cinematográfica assinada por Teague é muito acima da média, inclusive, superior a outras produções adaptadas por cineastas renomados como George Romero (Creepshow e Metade Negra), John Carpenter (Christine – O Carro Assassino) e David Cronenberg (A Hora da Zona Morta).

Apesar de estes grandes diretores terem realizados adaptações eficientes, nenhuma delas atinge o nível de tensão e medo de Cujo. Digo, sem pestanejar, que o São Bernardo dos quintos do inferno criado por King oferece um terror enervante e claustrofóbico com cenas de tensão de tirar o fôlego. No fundo, é a versão terrestre de Tubarão de Spielberg. Um pequeno diamante jogado aos porcos, entre as diversas adaptações bagaceiras lançadas na década de 80 em relação ao escritor.

Um fato curioso é que tanto o livro quanto o filme são subestimados (e totalmente esquecidos) pelo público quando se fala de King. É comum até lembrarmos porcarias como Apanhador de Sonhos e Torre Negra apenas para esculachar com elas, que esquecemos totalmente de Cujo. O próprio King sofre do mesmo mal: ele disse em entrevistas, que na época que escreveu o livro enfrentava fortes crises de alcoolismo, portanto nada lembra de ter escrito a obra, e por isso, nunca escondeu que prefere o filme em detrimento do seu filho.

Cujo parte da simplicidade para contar sua história: Donna (Dee Wallace Stone) e seu filho Tady (Danny Pintauro) ficam ilhados dentro de um carro na casa do mecânico Joe Chamber (Ed Lauter), localizada no meio do nada na fictícia cidade de Castle Rock. O problema é que em torno deles esta Cujo, o cão São Bernardo de Joe, que depois de contrair raivar ao ser mordido por um morcego, ameaça mãe e filho, que além de terem que lidar com a fera sanguinolenta– que já matou o dono em um violento surto raivoso – precisam enfrentar o calor escaldante, a desidratação, o sofrimento mental e, principalmente, o fato do pequeno Tady ter asma, e é lógico, não há qualquer bombinha no carro para salvá-lo. O survival horror de Cujo posto na mesa é de uma simplicidade enervante e cabe o público roer as unhas, enquanto tenta conter sua histeria junto com Donna.

Aqui vale elogiar o ótimo trabalho de Lewis Teague, que três anos antes, criou outro nefasto animal assassino nas telas com Alligator – O Jacaré Assassino, “Crássicão” B da finada Sessão das Dez do Tio Silvio Santos. O diretor quebra sem medo, aquela imagem adorável do São Bernardo da comédia familiar Beethoven para reconstruí-la brilhantemente, como uma máquina de matar raivosa, uma verdadeira força da natureza incontrolável e imperdoável. Teague também acerta ao transformar uma trama simples, em um desenrolar tão assustador, que impressiona pelo realismo que utiliza a tensão à flor da pele para causar impacto emocional no espectador.

Sua câmera é sempre mantida em ângulos baixos, sob o ponto de vista subjetivo do animal, para imergir o público na ação real de ataque de Cujo contra o carro e os personagens. É através dos planos e ângulos fechados e claustrofóbicos que o filme cria uma situação de desespero, com imagens angustiantes que jamais se rendem a sustos fáceis, até porque ele jamais se passa a noite, com Teague utilizando as cores do dia como situação de urgência e pavor que assola a mãe e filho, por meio da ótima fotografia de Jan de Bont (que na década de 90, dirigiria Velocidade Máxima e Twister).

Neste aspecto, orçamento barato permitiu o diretor usasse da criatividade para provocar o incomodo no público, com a fusão de vários elementos da cinematografia: o simples som de um telefone tocando nós instiga agonia; o passeio da câmera com planos abertos e fechados pelo cenário, intensificam a sensação de perigo; as feições sinistras que transformam o bonachão Cujo em um monstro gosmento, graças ao excelente trabalho de maquiagem para deixar o espectador assustado. Também é difícil não esquecer a cena perturbadora que o cão choca-se violentamente contra a porta do carro de Donna. A forma como Teague toma as rédeas do seu terror, pela subversão de expectativa, focada em trabalhar a limitação espacial para prover um suspense genuíno na sua claustrofobia, revela que ele é um artesão do cinema de gênero competente. A cena abaixo traduz com maestria, todas estas observações.

O filme não é rico apenas na parte audiovisual. O roteiro apresenta um ótimo subtexto sobre culpa e sexualidade, afinal Donna é mostrada logo no início como uma mulher de moral duvidosa – ela é infiel com o esposo – e os conflitos da personagem durante o desenrolar, revelam que o cão raivoso funciona como uma metáfora da sua infidelidade, enquanto o isolamento no carro representa uma mulher sufocada pela culpa. O enfrentamento destes elementos é a provação da personagem na reconstrução familiar que o filme propõe.

As atuações de Dee Wallace e do jovem Danny Pintauro contribuem para os momentos enervantes da obra. Walace que até hoje é lembrada como a mãe de Henry Thomas em E.T. – O Extraterrestre construiu uma vasta carreira no cinema de horror com Quadrilha dos Sádicos, Grito de Horror, Criaturas e A Casa do Diabo. Como Donna, a atriz tem o papel da sua vida, captando a urgência e o desespero de uma mãe que mostra o seu lado firme para salvar a cria. O próprio Stephen King assume seu lado de fã da atriz, ao considerar que sua atuação é a melhor entre todas as suas adaptações, inclusive, superando a elogiada interpretação de Kathy Bates em Louca Obsessão.

Em tempos que os dois filmes de monstrengos de 2018, Megatubarão e O Predador, patinaram feio na diversão, Cujo mostra como fazer a roda do cinema de horror de vilões animais girar, de forma simples, direta e sufocante. Extrai do universo de King, o aspecto de transformar o normal no doentio através da exploração de trazer à tona, o medo primitivo na figura de um simples cachorro.  Um filme que apesar da premissa boba, se torna uma experiência sólida, em capturar o espectador e jogá-lo no meio do inesperado como um ótimo thriller de horror deve ser.