Há uma cena em Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, de José Mojica Marins, merecedora de um lugar de honra no panteão de grandes cenas da história do gênero terror. Bem, o filme todo é repleto de cenas memoráveis, mas há uma em especial. É o famoso momento no qual Zé do Caixão, interpretado pelo próprio Mojica Marins, acorda no meio da noite e é arrastado por uma figura magérrima e vestida de preto até o cemitério, e de lá para o inferno.

Diz a lenda que Mojica baseou a cena num pesadelo, forte o bastante para leva-lo a criar o seu personagem Zé do Caixão, e por consequência o primeiro filme com ele, À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964). A situação mostrada na cena não é exatamente nova dentro do gênero terror, mas o que o gênio imagético de Mojica faz com ela é que garante o seu lugar na história. A figura de preto já é assustadora por si só, assim como o cemitério – reconstruído em estúdio, igual como se fazia nos velhos filmes norte-americanos da Universal Pictures, ou nos ingleses da Hammer. Mortos saem das sepulturas atrás do Zé do Caixão como vemos em muitos outros filmes. É então que Zé desce ao inferno, um cenário semelhante a uma caverna, e o filme subitamente se torna colorido – Esta Noite… é inteiramente em preto-e-branco exceto por essa sequência – e o espectador percebe que está nas mãos de um louco com uma câmera. Justamente a sensação provocada pelos melhores filmes de terror.

A visão do inferno de Mojica é psicodélica, inspirada pelo contexto da época, mas é ao mesmo tempo atemporal, com visões de pessoas crucificadas, sangue, mulheres nuas acorrentadas, e um clima frio – para o cineasta, o inferno parece ser gelado. Mojica ainda aparece duas vezes na sequência, vivendo também o imperador romano Nero. É quase algo saído da concepção do Inferno de Dante ou de alguma pintura estranha, mas curiosamente essa cena foi planejada e executada por alguém que abandonou a escola e que provavelmente nunca abriu um livro sobre cinema ou arte na vida. A educação dele foi, de fato, assistir a muitos filmes – Para mais detalhes sobre a vida e a carreira de Mojica Marins, recomendo muito a biografia dele, Maldito.

Assim, é curioso o fato de que o cinema de José Mojica Marins se alimenta de outros filmes. Por exemplo, em muitos sentidos Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver é uma típica continuação do gênero terror: maior, mais exagerada, feita com mais dinheiro e mais sangue. O longa até se inicia pelo final do anterior e com uma pequena trapaça, na qual o diretor/roteirista revela que Zé do Caixão não morreu de verdade no desfecho de À Meia-Noite Levarei sua Alma. Tal e qual A Noiva de Frankenstein (1935) começava mostrando que o Monstro não morreu, apesar do moinho ter caído em cima dele no final do filme anterior…

O fato é que Zé volta mais endiabrado do que antes. Ele arranja um assistente, que é corcunda (claro!), e recomeça a sua busca pela mulher superior que “lhe dará o filho perfeito”. E os horrores também recomeçam: Moças da cidade – vestindo camisolas e baby-dolls bem pequenos – são sequestradas e aterrorizadas com cobras e aranhas, pessoas morrem, Zé tem aquele sonho e tudo se encaminha para um final climático.

Ao longo do caminho, fica clara a inteligência da visão de Mojica: ele faz uso de elementos de filmes estrangeiros, mas a sua concepção de terror é incrivelmente pessoal e dentro da realidade brasileira. O Zé do Caixão é uma figura anárquica, dionisíaca, que zomba de nós, brasileiros: do nosso moralismo, da nossa curiosa religiosidade. Filmes de terror muitas vezes abordam o tema da destruição do tecido social como subtexto, aqui Mojica o traz para o centro da narrativa em diversas cenas. Esta Noite… não é sutil, claro, mas nem precisa ser, o fato de ele representar um soco no espectador é mais importante.

E, curiosamente, o fato de ele ser maior que o anterior não representa um problema ou faz com que a narrativa se perca, como muitas vezes acontece em sequências dentro do gênero terror. Pelo contrário, é um filme mais redondo e mais bem produzido que À Meia-Noite…, com atuações boas, em geral, do elenco e um maior apuro visual graças ao trabalho do diretor de fotografia Giorgio Attili. É um raro caso de sequência – no mínimo – tão boa quanto o original. Realmente impressiona o trabalho da equipe do filme e todos os ambientes da história recriados em estúdio, incluindo o cemitério e o lago. É no lago onde ocorre o momento mais fraco e destoante do filme, o final – exigido pela censura – que mostrava Zé do Caixão se arrependendo dos seus pecados e reconhecendo o poder da cruz de Cristo.

O fato de Zé do Caixão ser derrotado pela censura do Brasil da época – e a censura iria praticamente acabar com a carreira de José Mojica Marins nos anos seguintes – mostra como, muitas vezes, os filmes de terror refletem os temores da sociedade, mas são incapazes de competir com esses mesmos temores reais. É notório que o Brasil maltrata seus artistas, e poucos foram tão maltratados quanto Mojica – e vale lembrar que ele também teve culpa nesse processo ao banalizar seu personagem. Porém, enquanto o espanhol Luis Buñuel, o chileno Alejandro Jodorowsky e o norte-americano David Lynch, entre outros, são reverenciados em seus países e no mundo como autores de obras surreais e como artistas capazes de transformar seus sonhos e pesadelos em obras cinematográficas, aqui o cinquentenário de um marco como Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver passa quase despercebido. Mas a capacidade de transformar a loucura interior em imagens é um talento raro. Por isso vale a pena celebrar esses cinquenta anos: afinal, tanto À Meia-Noite Levarei Sua Alma quanto sua continuação ainda representam a essência do cinema de terror nacional, os filmes aos quais cineastas dedicados a esse tipo de produção ainda almejam alcançar. Espera-se que eles tenham pesadelos tão poderosos para servir de inspiração quanto aquele que Mojica teve, há mais de cinquenta anos.