Filmes baseados nas atrocidades cometidas por ditaduras militares já foram feitos inúmeras vezes. Em relação à ditadura de Pinochet, no Chile, parecem ser intermináveis, tal foi a dimensão do estado repressivo ali instalado em 1973. Ainda que sejam necessárias as denúncias contínuas de todos os fatos ocorridos para que não se repitam lá e em nenhum outro lugar, o cinema precisa se reinventar para não se repetir.

O filme do alemão Florian Gallenberger Amor e Revolução (2015) – não confundir com a telenovela homônima do SBT – pretende dramatizar uma das diversas formas encontradas pelos ditadores chilenos para “controlar” a população. Como em sua obra anterior John Rabe (2009), Gallenberger diz basear-se em fatos reais, estes agora ocorridos durante os primeiros momentos da ditadura pinochetista. Não há dúvida quanto à veracidade da existência de espaços públicos e privados que foram transformados pelos ditadores em locais de confinamento, tortura e assassinato. Já no filme de Patrício Guzmán Nostalgia da Luz (2010) há a denúncia comprovada de algo semelhante construído no deserto do Atacama.

No filme de Gallenberger nos é apresentada a Colonia Dignidad (antes tinha o nome de Sociedad Benefactora y Educacional Dignidad), assentamento existente desde 1961 fundado por imigrantes alemães liderados por Paul Schäfer. O local, legalmente constituído no Chile e liberado de imposto de renda e outras vantagens alfandegárias, abrigava regras extremamente autoritárias de uma seita religiosa de origem evangélica, onde seus habitantes viviam num estranho sistema no qual não tinham contato com o mundo exterior. Schäfer dividia os homens, as mulheres e as crianças em alojamentos isolados, não permitindo que os adultos tivessem relações sentimentais e conjugais, só autorizado para procriarem. Ou seja, um tratamento como se faz a alguns animais. Assim, pais não conheciam os filhos (os recém-nascidos eram retirados das mães com três meses de idade), as crianças não sabiam que tinham irmãos. Mas, esse absurdo em nome de uma pretensa retidão machista não era único; homens e mulheres eram obrigados ao duro trabalho agrícola não remunerado, enquanto as crianças eram submetidas ao abuso sexual por Schäfer ou a torturas quando se negavam e ele as acusava de “possuídas pelo demônio”. Tudo isto ocorrendo entre cercas elétricas que isolavam as pessoas, como num campo de concentração.

Pedófilo, nazista, torturador e manipulador, Schäfer se utilizava da psicologia e da força para manter seu poder autoritário. Nada mais perfeito para as intenções dos militares golpistas. Aliás, desde a Alemanha, já havia acusações contra Schäfer por sua forma de pensar e agir fascista, existindo defesas até o momento das denúncias de sua atuação no Chile por representantes conservadores. Portanto, Colonia Dignidad foi um dos espaços de detenção e tortura de manifestantes políticos utilizados na ditadura de Augusto Pinochet. Mesmo com a redemocratização do Chile em 1990, tanto a Colonia como Schäfer permanecem inatingíveis. Contudo, com o passar dos anos, aumentam as denúncias de abusos que existiam na Colonia, inclusive por parte de instituições internacionais, fazendo com que a opinião pública chilena identifique o local como uma espécie de enclave autônomo dentro do território. Somente em março de 2005, Schäfer foi detido e preso na Argentina e, em seguida, extraditado ao Chile. Por sua vez, a Colonia Dignidad foi ocupada pelas autoridades chilenas, transformando-a em Villa Baviera (hoje ponto turístico) e providenciando a emigração de alguns moradores que desejaram retornar à Alemanha.

Quase tudo isto é mostrado no filme de Gallenberger, mas como pano de fundo de uma improvável história de amor vivida, em 1973, pelo casal Daniel (Daniel Brühl), um fotógrafo alemão simpatizante das ideias socialistas de Allende, e Lena (Emma Watson), comissária de bordo, que regularmente se veem em Santiago, onde ele mora. No dia do golpe, Daniel é preso como ativista político e encaminhado para a Colonia Dignidad (para ser torturado, é claro). Lena, sem saber o que realmente ocorre no local, decide juntar-se ao culto religioso para encontrar Daniel. Se a decisão de Lena por si só não fosse já absurda, pois é algo patético de crença na “força do amor”, o clima de terror que se praticava naqueles dias no Chile indicaria que a probabilidade de, em se encontrando, saírem vivos era infinitamente pequena. A trama de Amor e Revolução, centrada excessivamente na relação amorosa do casal, revela-se frágil e precariza o real conhecimento dos fatos históricos. A atuação mediana dos atores (principalmente Watson) propõe-se muito mais a um ritmo fílmico de aventura ou thriller, algo que possivelmente tenha sido a intenção de Gallenberger. Mas nisso Costa-Gavras já era mestre ao realizar Missing – Desaparecido (1982), também sobre o desaparecimento real de um jornalista norte-americano – Charles Horman – na ditadura chilena.

Assim, a trama segue apenas a história do casal, que enfrenta todo tipo de risco, como se fossem detetives intrépidos que os espectadores torcem por um final feliz já enunciado no início da última parte do filme. O filme não aprofunda nos verdadeiros horrores coletivos vividos na Colonia Dignidad e entrar nela facilmente, como Lena faz, revela-se outra falácia. Outro problema é o idioma – inglês –, que descaracteriza e, de certa forma, menospreza o povo chileno, real sofredor dos atos bárbaros da ditadura. A produção deveria saber que a trama teria mais sabor de veracidade se falasse em espanhol, pois a poesia e a música cantada chilena ganhou referência mundial como expressão da luta contra sistemas opressivos. Um detalhe, mas que choca o espectador mais exigente: quando Daniel, um alemão conversa com o embaixador alemão, eles falam em inglês!! Tudo bem, não é exatamente um pecado capital, pois se trata de um filme de “produção internacional” e nem é e nem será a última vez que isso acontece no cinema, mas considerando que se baseia em fatos reais a preocupação procede.


Mas Amor e Revolução não é um filme ruim. Se deixarmos de lado os traços da realidade (e podemos?), o filme mantém as características do filme de gênero: um thriller dramático ambientado na época da ditadura chilena com uma história de amor como eixo principal. Ponto. Não se trata, portanto, de um documentário sobre a Colonia Dignidad do passado ou um drama político sobre o regime militar de Pinochet, ou ainda um filme-denúncia. Colocando-se nessa direção, podemos apreciar um bom trabalho de direção e montagem, pois as cenas são carregadas de planos fechados com as locações evitando grande quantidade de gente ou grandes manifestações públicas, sem a presença de fotografias de arquivo que aí poderia comprometer ainda mais o caráter histórico da trama. Centramos a atenção na relação do casal, sem esquecer o clima de tensão e perseguição vivido naquele momento na capital chilena. Não há surpresas ou reviravoltas no roteiro e tudo caminha num tom ascendente de tensão previsível para o “final feliz” daquelas circunstâncias. É uma história de amor que se mostra interessante para aqueles que ainda desconhecem as práticas promovidas pela ditadura de Augusto Pinochet. Outro ponto positivo é a atuação de Michael Nyqvist, conhecido pelo protagonismo na versão sueca de Millennium: Os Homens Que Não Amavam as Mulheres (2009) e em Missão: Impossível – Protocolo Fantasma (2011), perfeito para interpretar o sádico, frio e calculista Paul Schäfer, aparentando-se fisicamente com o grotesco alemão. Sua presença em cena é forte e mescla a personagem com a dose certa do fanático religioso, pedófilo e político, deixando-a mais perigosa e aterradora.

Mas a aberração maior fica por conta do título brasileiro – Amor e Revolução. Tá certo que se mantendo o título original, Colonia, pouco ou nada despertaria o interesse do público das locadoras (é, o filme saiu direto para as locadoras, mas aonde elas existem, mesmo?). Mas registro aqui o meu protesto por mais esse desrespeito à inteligência do público de cinema brasileiro.