O tempo é mesmo um bom juiz. Quando A General foi lançado, em 31 de dezembro de 1926 (em Tóquio – a estreia americana só aconteceria em fevereiro, por causa do sucesso do melodrama A Carne e o Diabo, com Greta Garbo), foi um revés tão fulminante na carreira de Buster Keaton que a United Artists nunca mais lhe permitiu comandar um projeto sozinho, além de marcar o começo de uma curva descendente, na admiração do público e da crítica, da qual o artista não conseguiria se recuperar.

Corte para novembro de 2017: A General é aclamado não só como uma das realizações supremas do cinema mudo – só Aurora, de F. W. Murnau, e seu rival direto, Luzes da Cidade, de Charles Chaplin, têm a mesma unanimidade de estima –, mas também como um modelo insuperável de seu gênero, a comédia física. Eis um filme sobre o qual há aquele raríssimo consenso: uma obra-prima, sem contraindicações, que envelheceu tão bem que parece melhor a cada ano que passa. O resultado pode ter sido desastroso pessoalmente para Keaton, mas o grande ator-diretor não reclamava: ele mesmo achava que não havia como superar A General.

E olhe que Keaton fez uma opção política arriscada com o filme: seu herói, o taciturno maquinista de trens Johnnie Gray, anseia por se alistar no exército confederado durante a Guerra Civil americana – justo o lado que defendia a manutenção da escravidão no país. O cômico sabia que estava mexendo num vespeiro, mas suas razões eram pragmáticas: de olho na América média, Keaton entendia que uma parcela considerável desse público simpatizava com o lado derrotado, e que personagens interioranos, caipiras, simplesmente agradavam mais a grandes audiências. Assim surgiram duas sacadas decisivas: seu mote, o famoso episódio do sequestro da locomotiva civil General por soldados da União, deixou de ser um óbvio thriller para virar uma comédia; e o herói que ajuda as tropas sulistas no encalço da máquina tornou-se o ingênuo Johnnie, que só ama duas coisas na vida: o trem e sua noiva, a doce Annabelle Lee (Marion Mack).

Assim, você talvez diria, um tema que fere a consciência histórica e racial dos Estados Unidos virou material para uma comédia de gags, com saltos, cambalhotas e caretas, e que ainda por cima ampara um exercício cinematográfico abertamente simpático aos landlords racistas do sul dos Estados Unidos. Talvez fosse assim, se Keaton não construísse sua história além (ou atrás) de dicotomias simplistas de heróis e vilões, e se não o interessasse acima de tudo a paixão de Johnnie por Annabelle e a locomotiva. A Guerra Civil, em A General, está lá, mas ela existe mais como um painel grandioso onde a ação se desenrola, com os planos mais perfeitos desde Griffith (e antes de Ford) – planícies, bosques, montanhas, massas humanas e, na cena mais famosa do filme, a espetacular queda da locomotiva Texas num riacho do Oregon –, e, principalmente, como pretexto para algumas das cenas de comédia física mais perfeitas do cinema.

Noventa e um anos de sol e chuva nas costas, e A General continua a impressionar pelas cenas de ação, várias das quais devem continuar insuperadas no cinema, pelo risco de vida envolvido e pelo inusitado das situações. Até Jackie Chan aparecer, na década de 1980, os stunts mais perigosos e bestificantes do cinema são os de Keaton – quem já viu seus outros grandes filmes dos anos 1920, como Nossa Hospitalidade (1923) ou Marinheiro de Encomenda (1928), com aquela cena absurda da casa que desaba sobre ele – sabe que dele se podem esperar milagres como dublê, e A General não desaponta: entre os momentos mais se-alguma-coisa-der-errado-ele-morre-de-verdade estão os em que Johnnie tenta desacoplar vagões em movimento; ou quando ele precisa se sentar na ponta frontal do trem com um tronco de lenha nas mãos (e depois desviar outro tronco vindo em sua direção); ou quando ele tem de caminhar com graça sobre vários trens em movimento.

Até a cena mais icônica e singela do filme, aquela em que Johnnie, que acaba de perder a mão de Annabelle por não conseguir se alistar no exército, se senta cabisbaixo sobre as rodas da General e esta começa a andar, teria resultados terríveis se alguma coisa não saísse como planejado. Mas as coisas nunca acabam mal para Keaton; como poderiam? Seu cinema é um monumento ao otimismo do homem comum, à resolução incansável de superar todas as adversidades, físicas e emocionais, que o mundo joga sobre seus personagens.

Ao longo da sua filmografia, os protagonistas de Keaton mergulham em redemoinhos, caem de pontes suspensas, sobrevivem a ciclones. O famoso olhar sério, que já foi chamado de “sem expressão”, do comediante (para este escriba, o olhar terno que Johnnie lança quando reencontra Annabelle é tão comovente quanto o de Chaplin para a florista em Luzes da Cidade) fazem parte dessa persona mágica: nos identificamos com Keaton e torcemos por ele porque sabemos que seus personagens são sempre sérios, estóicos, determinados a enfrentar o perigo sem trapacear, e também porque quase tudo o que ele faz é por causa de uma modesta felicidade doméstica: nos filmes de Buster Keaton, nada vale tanto a pena quanto se lançar sobre um redemoinho ou escalar montanhas para ter lado a pessoa amada. A vida é bem mais complicada, sabemos, mas é bonito. E bonito basta.

Ouso dizer, aliás, que neste aspecto Keaton é o comediante mais atemporal de todos: numa época em que os cômicos só sabiam expressar emoções com caras e bocas exageradas, a impassibilidade de Buster tem muito mais a ver com a naturalidade de expressão do cinema moderno, um mérito, aliás, que escapou até a Chaplin; e, diante das comédias verborrágicas e/ou histriônicas de hoje, sua delicadeza continua um modelo de eficiência e refinamento.

Crítica e público em 1927, porém, só souberam enxergar a falta de risadas óbvias nas situações cômicas longa e brilhantemente desenvolvidas – nenhum outro filme na história do cinema, por sinal, soube criar uma tensão tão grande de uma situação de perseguição entre locomotivas, que naturalmente sofrem na comparação com seus parentes mais velozes e furiosos, por se manterem rigorosamente nos trilhos e nunca atingirem distâncias de Fórmula 1; tente segurar a inquietação na gag do canhão aceso. Pouco depois, o cinema mudo acabaria e, com ele, a possibilidade de novas realizações no estilo atlético, elaborado e até perigoso, mas sempre solar e otimista, de Buster Keaton. A General, então, ficou como o seu monumento mais perfeito. O tempo, em sua sabedoria, nos fez ver.