É 1967 e o maior astro do cinema é um homem negro: Sidney Poitier, que faleceu em janeiro último aos 94 anos de idade, estrelava três grandes sucessos naquele ano, todos tratando, com diferentes níveis de qualidade, da questão racial. Era um momento em que o Movimento dos Direitos Civis, a contracultura, o sentimento de revolta e de transformação social incendiavam os EUA. Também diz muito sobre Hollywood que os três filmes estrelados por Poitier – “Ao Mestre, com Carinho” (Dir.: James Clavell), “Adivinha Quem Vem para Jantar” (Dir.: Stanley Kramer) e “No Calor da Noite (Dir.: Norman Jewison) – utilizem a figura do ator como espécie de totem moral. A essa altura, Poitier já havia se especializado em interpretar o papel de Homem Negro Impossivelmente Virtuoso: personagens egressos de boas faculdades, engomadinhos, extremamente dignos, incorruptíveis.

Ou seja, os lançamentos desses filmes não deixam de soar como um tapinha nas próprias costas por parte da Hollywood liberal, como se dissessem: “lançaremos esses filmes socialmente relevantes, deixaremos até que sejam estrelados por um negro, mas só se tal protagonista englobar, no fim das contas, o suprassumo da branquitude, da domesticação”. De certo modo, “Ao Mestre, com Carinho” também oferece um bom exemplo desse tipo de procedimento de domesticação, só que em relação à juventude moderna e rebelde sessentista. Nele, é como se a moral da história fosse: ‘ok, vocês crianças podem continuar sendo hippies barulhentos, desde que tomem banho e tenham empregos respeitáveis’.

O próprio Poitier tinha reservas em relação à persona que construíra para si à época, tendo dito que gostaria de lidar com “imagens da vida negra mais dimensionais”. Àquela altura, ele já havia se tornado o primeiro homem negro a ganhar o Oscar de Melhor Ator pelo seu papel em “Uma Voz nas Sombras” (Dir.: Ralph Nelson, 1963). E, em 10 de abril de 1968, “No Calor da Noite” sairia consagrado com a estatueta de melhor filme.

O MAGNETISMO DE POITIER

De fato, a película de Jewison contém a melhor performance de Poitier dentre os seus filmes de 1967. É que – e esse é o tipo de coisa que sequer é necessário dizer – Sidney Poitier foi um ator monumental. Impensável seria produzir um filme como “No Calor da Noite” sem a intensidade majestosa e a expressividade suave da sua presença.

A trama começa com toda a pinta de um filme de prestígio corretinho: acompanhamos o policial da Filadélfia, Virgil Tibbs (Poitier) à espera de um trem partindo da racista cidadezinha de Sparta, Mississipi, até ser levado ao xerife local (Rod Steiger, vencedor do Oscar de Melhor Ator pelo papel) como suspeito por um assassinato. Por ser perito em homicídios, Virgil é ordenado pelo seu superior a auxiliar a polícia da cidade na investigação. Assim ele o fará ao longo do filme, colocando-se em risco cada vez maior enquanto os caipiras da região o cerceiam.

Em parte, a decisão de Tibbs em permanecer na investigação a qualquer custo se dá, sem dúvidas, por orgulho: ele tem plena ciência de que é muito mais inteligente e capaz que todos os outros policiais brancos dali juntos. Poitier tinha um talento incomparável em ser simultaneamente terno e grave, com a imponência de uma estátua de bronze. Sua voz melodiosa e gestos delicados são interrompidos por explosões de fúria, em que os olhos se esbugalham e mãos cortam o ar de forma grandiloquente. Se “No Calor da Noite” é um filme que utiliza a figura do ator ao máximo, é porque toda a ação dramática do longa é estruturada em torno da sua presença.

Exemplar nesse sentido é a cena em que Tibbs examina o corpo do morto no necrotério: Jewison filma as mãos de Poitier deslizando em close pelo cadáver, com a voz suave enunciando seus achados em off, enquanto ordena que os outros personagens apanhem isto ou aquilo para ele. Que tal momento atinja dimensões poéticas é testamento do magnetismo de Poitier. Já quando parte para os planos médios e abertos, Jewison é auxiliado pelo diretor de arte Paul Groesser e pelo diretor de fotografia Haskell Wexler (o primeiro a iluminar uma cena levando em conta as especificidades da pele negra) na criação de escritórios velhos e escuros, cujas paredes descascadas parecem mesmo transpirar. Essa dimensão háptica é importante, já que é através do tato que Tibbs explora os locais por onde passa e descobre as pistas, como quando investiga o interior de um carro.

‘A ERÓTICA DA ARTE’

Em um filme chamado “No Calor da Noite”, é apropriado que Jewison e equipe construam o espaço atentando para o sensorial. Muito do prazer proporcionado pela obra deriva de ver Poitier simplesmente transitando em meio às texturas dos quadros. Quando vemos o papel de parede desgastado da delegacia ou o suor escorrendo pelo corpo dos atores profusamente, é difícil não pensar na definição de “excesso” usada pela teórica Kristin Thompsom: aqueles momentos em que a materialidade do que é capturado em imagens e sons ultrapassa quaisquer funções narrativas discerníveis. É então que o espectador pode mergulhar nesse “segundo filme” dentro do filme, o que também remete à formulação de Susan Sontag em “Contra a Interpretação”: uma “erótica da arte” em detrimento a uma “hermenêutica”.

Os dois maiores prazeres da obra aparecem, portanto, na construção dos espaços e no modo como Poitier se impõe neles. Ainda assim, “No Calor da Noite” perde boa parte de seu fôlego dramático lá pela metade da projeção, quando se entrega de vez às maquinações batidas da plot. Por exemplo, justo quando eu me perguntava se teríamos uma cena para que Poitier e Steiger criassem um vínculo a partir de suas histórias pessoais, a dita cuja teve início na tela.

Momentos como esse dão a impressão de que o inevitável ar de “filme-prestígio” ameaça tomar conta da projeção, contaminando tudo com pretensões a mensagens conciliadoras. Felizmente, não é nenhum problema que a força icônica de Poitier não possa resolver.