Partindo da raiz do que a expressão cult movie significa no cinema, este texto da seção de mesmo nome no Cine Set traz uma obra que não necessariamente é objeto de culto dos cinéfilos hoje. Porém, ela aborda um filme que explica justamente como e por que se dá esse processo, que é o mote do documentário “Hitchcock/Truffaut” (2015).
O longa de Kent Jones é, por si só, um filme de adoração. O diretor possui uma curta filmografia, caracterizada por obras que abordam o cinema e que sempre contaram com a muleta de Martin Scorsese como apoiador, o que também acontece em “Hitchcock/Truffaut”. Jones escreveu o documentário juntamente com Serge Toubiana, importantíssimo crítico de cinema e atual diretor da Cinemateca Francesa. O longa segue os passos do livro de mesmo nome, escrito pelo emblemático diretor e crítico de cinema François Truffaut, o homem responsável por cimentar o nome de Alfred Hitchcock no panteão dos grandes artistas da história do cinema.
Mais que simplesmente transpor o conteúdo do livro de entrevistas, “Hitchcock/Truffaut” convida grandes nomes do cinema para revisitar a quase obsessão de Truffaut com a filmografia do diretor inglês. Estão ali informações básicas sobre Hitch, a revisita aos principais filmes e detalhes sobre a série de entrevistas idealizadas por Truffaut no início dos anos 1960, mas também falas de diretores como Martin Scorsese, Richard Linklater, Wes Anderson, David Fincher, entre outros. De certa maneira, a presença deles torna a paixão de Truffaut algo contemporâneo a uma nova geração.
Outra jogada que retrabalha o livro base em “Hitchcock/Truffaut” é a maneira criativa com que Jones utiliza o fato de ter acesso às quase 27 horas de gravação das entrevistas entre os dois cineastas. Em vários momentos, é possível ouvir os “bastidores” das conversas, incluindo aí momentos em que Hitch solicitava que Truffaut desligasse o gravador, deixando-nos, literalmente, no suspense de imaginarmos o que ele teria dito. Esses momentos são intercalados justamente pelas conversas nas quais ele explica o que é a construção do suspense em seu cinema.
Falar de audiovisual com audiovisual
Sem dúvida, a presença das cenas dos filmes para as discussões travadas entre os dois diretores é o trunfo do documentário. Assim como em “A História do Cinema: Uma Odisséia”, outro documentário essencial sobre cinema que foi baseado no livro de mesmo nome escrito por Mark Cousins, a imagem em movimento ilustra aquilo que o livro enquanto mídia tem como limitação. Podemos então observar de forma mais clara e didática detalhes da construção de sequências, recriar padrões e comparações no uso da imagem e do som e entender bem melhor parte do processo criativo que Hitchcock aborda em profundidade no decorrer das entrevistas. O casamento de áudio e visual com certeza agradaria a Truffaut, que teve na edição de seu livro uma enorme preocupação de como traduzir em imagens o que as palavras traziam.
Aliás, a persistência e cuidado de Truffaut para com o livro é o único item que deixa a desejar no documentário. Nele não é aparente aquilo que podemos conferir, por exemplo, no livro “O cinema segundo François Truffaut”, de Anne Gillain. Nas entrevistas dadas pelo diretor e recolhidas por Gillain, aprendemos que ele passou anos até conseguir realizar o sonho não só de entrevistar o diretor que considerava o mais expressivo da época, mas de editar o livro com o primor que ele julgava merecedor, o que se revelou uma verdadeira epopéia. No “Hitchcock/Truffaut” documentário, o francês é um quieto coadjuvante, o que de certa forma até faz sentido, mas tira um pouco do caráter de homenagem do longa para com ele, que veio a se tornar um diretor tão emblemático quanto.
Tirando esse “pecado” menor, é um prazer e uma obrigação aos cinéfilos se debruçar especialmente aos trechos que abordam a produção de Hitchcock no período do cinema silencioso e os produzidos na Inglaterra como um todo e como eles guiaram muito do que o diretor viria a revolucionar em termos de linguagem cinematográfica no futuro. Apesar do óbvio (e merecido) destaque a “Um corpo que cai” (1958), “Psicose” (1960) e “Os pássaros” (1963), os filmes do período pré-Hollywood são imprescindíveis para o entendimento de como se moldou a noção de cinema hitchcockiano. Dessa maneira, a revisita a filmes como “The Lodger: A Story of the London Fog” (1927) ou “Easy Virtue” (1928) são uma instigante porta de entrada a novos cinéfilos e realizadores interessados no fascínio que Truffaut ajudou a incutir em nossas mentes a partir de seu livro.
Mais que fascínio, domínio
Mais que o fascínio por si só, “Hitchcock/Truffaut” bate ainda em duas teclas que guiam o ritmo do documentário e o dão uma identidade para além da “grife” do nome dos diretores. Trata-se do enfoque dos aspectos psicológicos invocados pela filmografia de Hitchcock e pelo destaque à figura do diretor como analista. Sobre o primeiro, observa-se no longa de Jones uma predileção a mostrar como as escolhas criativas de Hitchcock enfatizavam distorções sutis, mas impactantes, da diegese para a criação da atmosfera da obra. É a recriação do medo em si, e como sugeri-lo ao público a partir de uma interpretação íntima, o que nos faz há décadas preencher as lacunas da visão do autor com nossos próprios receios íntimos, mantendo o impacto da filmografia do inglês ao longo do tempo.
Já o segundo tempo é de interesse principalmente dos espectadores que também são diretores. Ouvir Scorsese ou Linklater falarem sobre a obra de Hitchcock mostra como eles entendem, para além do que o senso comum toma como “artístico”, a linguagem cinematográfica em seu aspecto técnico, como conhecem as “regras” para saberem como, onde, quando e por que é interessante quebra-las de forma a gerar uma verdadeira ruptura. Percebe-se aí que o diretor está longe de ser uma figura descompromissada: mesmo os adeptos de uma pegada mais experimental e livre compreendem o cinema como ele é: uma arte altamente técnica, que exige que o diretor seja também um analista a todo o momento, alguém movido não só por inspiração, mas principalmente por conhecimento, com a diferença de que, ao invés de escrever sobre um filme, ele aplica seus saberes sobre como se estrutura um filme em uma nova obra.
Ainda que Jones obviamente seja um diretor menor se comparado aos que dão nome a seu documentário, é louvável sua tentativa de imprimir uma discreta noção de autor nas escolhas que ele fez ao definir a “pegada” de Hitchcock/Truffaut”. Mesmo que seu longa fosse puramente expositivo, já seria de grande valia como complemento do livro. Ele, porém, é mais que isso: explica as raízes de como uma obra (no caso, as obras) passa pelo crivo de críticos e da comunidade cinematográfica no processo de galgar os passos que a tornam cult e, no caso de Hitch, posteriormente clássica e essencial.
Ótimo texto! Uma pena que isso não se encontra nem em dvd aqui no Brasil.