Assistir ao novo Malasartes e o Duelo com a Morte, de Paulo Morelli (da série e filme Cidade dos Homens e do bom drama Entre Nós) só reforçou minha admiração pela difícil receita conseguida por Guel Arraes em O Auto da Compadecida (2000).

A graça, a inteligência, a incisividade e, principalmente, o fascínio pelas tradições populares, pelos modos e usos do Brasil profundo, interiorano, daquele filme, foram admiradas, evocadas e até copiadas descaradamente desde então (até pelo próprio Guel, no bom Lisbela e o Prisioneiro [2003]), mas nunca mais recriadas com o mesmo vigor – e Malasartes, infelizmente, apesar do bom elenco e da produção caprichadíssima (o filme apregoa trazer o maior número de efeitos especiais já visto na filmografia nacional) não conseguiu chacoalhar esse coreto.

Inspirada no personagem que é uma figura duradoura do imaginário nacional, o matuto espertalhão Pedro Malasartes, protagonista de uma série de filmes do comediante paulistano Mazzaropi na década de 1960, a obra de Morelli tenta recriar o humor ingênuo e matreiro do mundo caipira, mas o que saiu nesse novo filme é uma espécie de versão hollywoodiana (ou global) desse microcosmo.

Malasartes (vivido com um pouco de afetação por Jesuíta Barbosa, de Praia do Futuro) vem a ser parente de uma figura assustadoramente familiar: a Morte (Júlio Andrade, de Gonzaga – De Pai pra Filho). Dois mil anos depois de tomar para si o ofício de conduzir as almas a seu destino final, função que antes cabia às Parcas (as três irmãs que, na mitologia grega, tecem os destinos humanos), a Morte ficou – trocadilho intencional – mortalmente entediada. Para poder se dedicar a novos prazeres, ela decidiu apadrinhar um ser humano, ao qual lhe transmitiria a autoridade, e, claro, o fardo. Mas não poderia ser um ser humano qualquer – tinha de ser o mais esperto entre os homens, e o mais esperto de todos calharia de ser o caipira Malasartes. Eis que, aos vinte e um anos, vivendo de pequenos trambiques, com uma dívida que o prende ao irascível Próspero (Milhem Cortaz, de Tropa de Elite) e a paixão devotada da bela Áurea (Ísis Valverde), irmã de Próspero, Malasartes é abordado por seu padrinho, o qual lhe dá um presente que é, ao mesmo tempo, um teste: na presença de um moribundo, Pedro pode enxergar o convidado funesto, e saber se este veio para recolher sua alma, ou para devolvê-lo à saúde e à vida – e o dom de, por três vezes, decidir sobre o destino de quem lhe aprouver.

É um enredo simples, em tese, mas Morelli adensa seu novelo ao tentar desenvolver três narrativas paralelas – o encontro e as disputas entre Pedro e a Morte, as aventuras e desvarios de Pedro, Áurea e do ingênuo Zé Candinho (Augusto Madeira, de Os Penetras) no mundo dos vivos, e as tentativas da Parca Cortadeira (Vera Holtz) e do assistente da Morte, o tolo Esculápio (Leandro Hassum, que apenas repete os tiques de seu personagem mais famoso, o segurança Jorginho do humorístico Os Caras de Pau), de tomar o lugar de Malasartes na sucessão daquela. É o velho problema do excesso de histórias, cuja qualidade variável tende a diminuir o impacto dos melhores momentos do filme. Mas há outro, maior: a falta de ritmo. Talvez pela vontade de aproveitar bem os ótimos efeitos conseguidos por sua equipe, Morelli se ocupa demais das sequências ambientadas no mundo subterrâneo da Morte, que acabam se revelando artificiais e enfadonhas, e desperdiçando o ótimo material das trapaças de Malasartes entre os vivos.

Mais uma vez, a comparação são os filmes de Guel Arraes, que reconheciam o encanto da fala popular e o apelo infalível das brejeirices dos personagens. As cenas em que Malasartes tenta usar sua capacidade de enxergar a Morte para poder se passar por médico, por exemplo, passam rapidíssimo, enquanto as brincadeiras do protagonista com as velas do subterrâneo são longas e repetitivas. O desfecho do filme também é confuso, com a alternância excessiva entre os personagens deixando o clímax meio perdido, alheio, para o espectador. Uma vez que o ritmo, a capacidade de dar a duração e o encadeamento exato das cenas, é o elemento mais decisivo numa comédia de gags, Malasartes, assim, acaba esvaziado de parte considerável da sua força.

Confesso que também me incomodou o excesso de fotogenia do filme, o fato de os atores principais terem um aspecto “urbano” demais, à exceção de Barbosa e Cortaz, para uma história sobre tipos populares – Madeira, porém, supera o problema ao dar o tom exato para o ingênuo e amável Candinho.

Resta, então, ao visual caprichado do filme, fruto de uma produção elaborada, que começaria em 2015 e levaria dois anos até a finalização, o principal apelo para o grande público. Fosse mais fluente e genuinamente engraçado, sem parecer tão bem comportado e preso a fórmulas pouco originais de comédia, Malasartes e o Duelo com a Morte seria uma grande realização para o cinema brasileiro em 2017. Do jeito que está, há momentos de deslumbre visual (o primeiro contato de Pedro com o subterrâneo, ao som do Entardecer de um Fauno de Debussy, talvez seja o maior destaque; também vale citar a bela animação inicial), mas nada de muito memorável no aspecto que realmente conta: o encanto inesgotável do Brasil interiorano e seus malandros de bom coração.