Os filmes mais conhecidos sobre o “sonho americano” geralmente envolvem famílias brancas e predominantemente hétero (pode até ter um tio gay ou um amigo imigrante, geralmente tratados como esquisitões). Muito antes de essa fórmula invadir nove entre dez títulos “independentes” que surgem no Festival de Sundance, a cineasta Jennie Livingston levou às telonas um dos retratos mais dolorosos do real “sonho americano”, repleto de finais amargos e de histórias tão tristes quanto coloridas.

Dos filmes lançados nos anos 1990, poucos foram tão merecedores do título de ‘divisor de águas’ quanto “Paris Is Burning”. O documentário usa seus 71 minutos para sintetizar o universo LGBT, com o pano de fundo dos tradicionais concursos de drag queen que animavam as boates de Nova York na década de 1980.

O que poderia ser um filme com valor institucional e enfadonho ganha vida graças às personagens entrevistadas por Jennie. Não é difícil se encantar pela honestidade desconcertante de Pepper LaBeija, que, famosa há duas décadas à época do filme, se sente responsável pelos mais jovens. Quando Pepper diz que a América é “branca” e que os negros têm aprendido a sobreviver há 400 anos, vemos o pouco que evoluímos como seres humanos no último quarto de século.

“Na Cama com Paris em Chamas”

É interessante notar que “Paris is Burning” estreou quase que ao mesmo tempo que “Na Cama com Madonna”, documentário sobre a estrela-maior da época, que fez do “voguing” (dança popularizada nos bailes mostrados no filme de Livingston) um sucesso pop, com refrão e coreografia. No filme de Madonna, temos os dançarinos (gays e negros) do corpo de baile de artista quase que como uma extensão dos personagens sofridos de “Paris Is Burning”. Os dois filmes conversam entre si, ainda que o documentário sobre a cultura dos bailes seja mais substancial em sua mensagem.

Substância essa que vem muito da espontaneidade. “Paris Is Burning” é informal na mesma proporção em que “Na Cama com Madonna” parece roteirizado até o último fio de cabelo. Vemos os entrevistados no meio da rua, dando seus depoimentos à câmera ao mesmo tempo em que conversam com as pessoas que vão passando; somos convidados ainda aos camarins onde os artistas se preparam e às salas onde eles costuram suas roupas. Isso confere uma intimidade quase que imediata e faz dos depoimentos mais simples verdadeiras confissões.

Espertamente, o contraponto com os depoimentos íntimos e com a “irmandade” dentro dos salões de baile é feito com imagens de héteros cis andando nas ruas, com suas roupas extravagantes dos anos 1980 e músicas dançantes como “Got to Be Real” ao fundo. Ainda que alguns personagens pontuem em depoimentos, não é preciso muito para entender que aquele mundo “exterior” não pertence a eles. “É como atravessar o País das Maravilhas. Você entra [no ballroom] e se sente bem. Deveria ser assim no mundo”, diz um personagem logo ao início da projeção.

26 anos depois de seu lançamento, “Paris Is Burning” tem poucos sobreviventes em seu elenco. Pode não ter sobrado muito do filme no plano “físico”, mas, no cinema independente, ele deixou um legado que deveria ser revisitado por aqueles que querem entender o que é esse tal “sonho americano”.