O Brasil de 2019 vive um momento no qual nosso presidente acha pertinente vetar o financiamento de produção audiovisual que trabalhe a temática LGBT+ e o prefeito do Rio de Janeiro decide agir como um típico censor ao mandar recolher livros por causa de um beijo. Ao mesmo tempo, a estimativa é de que existam cerca de 20 milhões de LGBT+ no país. A tentativa de invisibilizar as vivências dessas pessoas e a consequente necessidade de combater tamanho absurdo demanda reflexão e ação. Esses dois elementos sobram em “Não é o homossexual que é perverso, mas a situação em que ele vive” (Nicht der Homosexuelle Ist Pervers, Sondern Die Situation, In Der er Lebt, 1971).
Trata-se de um estranho filme-ensaio-camp absurdamente atual do diretor Rosa Von Praunheim, homossexual afrontoso desde o nome artístico: o “Rosa” remete à cor dos triângulos (Rosa Winkel, em alemão) que os gays eram obrigados a afixar nas roupas em campos de concentração nazistas. “Não é o homossexual […]” foi um de seus primeiros longas, rodado com poucos recursos, dentro de um estilo transgressor.
Da estética camp, Von Praunheim empresta aspectos expressos, por exemplo, na não-sincronização de som durante os diálogos. Outro artifício é a precariedade da imagem, que fica explícita ao espectador, assim como o tom de grande ironia. Este último se junta à proposta de filme ensaio, uma vez que a obra é, no fim das contas, uma não-ficção com encenações e offs que, em seu tom, nos faz lembrar de documentários do Animal Planet.
E o que é narrado ali, afinal? Tem-se duas frentes: uma é um panorama geral das práticas homossexuais de homens brancos da Alemanha nos anos 1970, e outra é uma história mais pessoal, a do jovem Daniel (Bernd Feuerhelm). Este veio de uma cidade interiorana para Berlim, tendo sua primeira relação com Clemens (Berryt Bohlen), com quem passa a morar junto. No entanto, Daniel busca novas experiências, que vão desde trocar seu amante por um homem rico e mais velho, idas a cafés e baladas gays, a busca por sexo casual em banheiros públicos e parques, até a iniciação em espaços de debate político da causa LGBT+.
Brutal e preciso
Para o espectador de hoje, a narração em “Não é o homossexual[…]” é o ponto mais delicado. O motivo: para uma pessoa com um mínimo de sensibilidade e noção de politicamente correto, ela é extremamente brutal ao descrever elementos negativos de uma dita cultura gay, tais como o culto à beleza, incentivo à frivolidade (expresso na adoração a divas de Hollywood e revistas de fofoca, por exemplo), hipersexualização dos corpos e preconceito contra pessoas mais velhas e gordos. Ao mesmo tempo, para uma pessoa preconceituosa, tais colocações seriam senso comum, pois elencam características que permeiam o olhar homofóbico.
Tal traço na locução, porém, tem um objetivo: presta-se não apenas a criticar, mas também desprezar a assimilação de valores burgueses nas vivências dos homens gays. Nesse sentido, o título completo do filme fala por si na medida em que o documentário explica que as ferramentas encontradas pelos homossexuais para sobreviver a um mundo que os oprime com o mínimo de esforço é pousar em margens e brechas seguras dessa sociedade, ou seja, em seu “submundo”.
Por sua vez, o espaço dos bares, dos banheiros públicos e parques, em suma, o espaço da sexualização dos corpos predomina, uma vez que é apenas nas sombras que esse grupo tem permissão para transitar. Como consequência, romantiza-se a vida dos “normais”, fazendo com que muitos homossexuais almejem os valores e o cotidiano “sem problemas” dos heteronormativos (ou seja, os valores da burguesia e sua alienação capitalista).
Tal interpretação desses offs se solidifica na medida em que lembramos de outro filme de Von Praunheim produzido naquele mesmo 1971: a paródia “Die Bettwurst”, que também delineia críticas a valores burgueses a partir dos personagens principais, o casal Luzi e Dietmar. Demarcada sua ojeriza a esses valores, em “Não é o homossexual…”, Von Praunheim não poupa ninguém. Porém, ele também não se aprofunda no fato de que vários elementos aparentemente supérfluos da cultura gay que ele deprecia são críticas sociais implícitas – afinal de contas, todo ato desviante o é.
Assim, a aparente arrogância da locução em “Não é o homossexual […]” encontra sua razão de ser. Não é a cultura gay em si que ela parece abominar, e sim, o motivo pelo qual ela se constituiu daquela forma. Talvez por isso ela lance um olhar bem mais benevolente para com as drag queens e efeminados que aparecem pontualmente no filme, os quais, pelo menos, tem a coragem de desafiar a normatividade de uma sociedade adoecida.
Esclarecida tal função, é esse componente fílmico que dá liga ao documentário de Von Praunheim, uma vez que as imagens são um tanto descontínuas e causam estranhamento ao espectador menos afeito a filmes de matiz experimental. As atuações de Bernd Feuerhelm e Berryt Bohlen estão longe de ser um forte do filme, e sua artificialidade acaba remetendo novamente ao aspecto camp da obra, propositadamente ou não.
Chamado à luta!
Se, por um lado, o documentário de Rosa Von Praunheim tece uma série de asserções ácidas no seu retrato do mundo gay da Alemanha no início dos anos 1970, por outro, também busca soluções. Esse foi um dos motivos do filme ter mobilizado grupos de homossexuais à época, demarcando a posição de seu diretor também como ativista pelos direitos LGBT+.
Na medida em que Daniel começa a interpretar suas vivências calcadas na hipersexualização, ele busca espaços alternativos, nos quais começa a ser introduzido à discussões mais veementes sobre sua condição de ser no mundo. Vai a um bar, por exemplo, onde vemos a performance de drag queens e o único negro do filme, além de homossexuais mais velhos (agora, sem a companhia de uma narração que destaca o quanto eles não são bem-vindos no universo gay “tradicional”, reprodutor de valores burgueses e culto à juventude). Ali, vê outros homens não como amantes em potencial, mas como pessoas expressando-se com mais liberdade e relaxamento.
Em meio a lençóis lavanda, um grupo de homens chama Daniel à ação política. A fotografia, nesse momento, brinca com as expectativas do público, uma vez que vemos corpos de torsos nus engajados em uma ação totalmente assexuada. O grupo enumera uma série de atitudes necessárias à comunidade gay, as quais ecoam até hoje: é necessário sair do armário e não sentir mais culpa por ser quem é, assim como organizar-se politicamente e denunciar a homofobia. No cotidiano, o homossexual deveria ir além da sexualização e idealização do corpo masculino, pois há um ser humano em cada um desses corpos. Por sua vez, não é saudável isolar-se da sociedade, e sim, mostrar aos outros que os homossexuais já fazem parte dela.
O grupo se aprofunda em suas colocações e fica claro que o chamado à luta é mais macro que parece. Por isso, eles postulam que “efeminados”, sadomasoquistas, “discretos” … todos devem se unir em prol de uma causa comum e não mais se esconderem espaços de gueto. A necessidade também é de aliar-se a todas as minorias, tais como feministas e grupos antirracistas, mostrando solidariedade para que, juntos, mobilizem-se publicamente. Tudo é exposto em asserções de fácil entendimento, e o próprio cansaço causado pela imagem potencializa a força do áudio, num jogo cinematográfico desafiador.
O grupo admite ainda que os valores burgueses (entendidos aqui como conservadorismo, desigualdade socioeconômica e materialismo) deveriam ser ridicularizados e evitados, pois apenas maximizam o vazio existencial. Nesse sentido, a aparente “cagação de regra” contra baladas gays ao longo do documentário se justifica, uma vez que qualquer espaço cuja única serventia é potencializar sexo exploram economicamente o homossexual e o coloca na posição de item a ser adquirido e utilizado por outro. Von Praunheim critica até mesmo o cinema. Em seu documentário, defende que programas de TV, filmes de Hollywood, revistas de celebridades e moda são, no fim das contas, mecanismos da burguesia que exploram os homossexuais quando lhe convém.
São colocações incisivas e que tem um ponto de partida bem particular. No entanto, Von Praunheim permite ao espectador entender que esta é a sua visão. À época, gerou um impacto, sendo citado como inspirador para a criação de grupos de mobilização política da causa LGBT+ na Alemanha. Assistir a essa obra em 2019 e perceber que tantos são os pontos que ainda dialogam com nossa realidade faz refletir sobre o poder do audiovisual e fortalece a posição de seu realizador: para determinados setores de nossa sociedade, é apavorante pensar em minorias como gente.