A cena de abertura de Ponte dos Espiões mostra um homem se olhando no espelho enquanto pinta seu autorretrato: ele está de costas para a câmera e, de início, não vimos seu rosto, apenas duas representações dele, o reflexo e a pintura. A composição desse frame será referência constante no filme, frequentemente opondo dois personagens e colocando-os um em frente ao outro, quase sempre em posição de confronto. É um jogo de dualidades, aparências e verdades encobertas, e que dá tom ao novo longa de Steven Spielberg.

O homem na cena em questão é Rudolf Abel (Mark Rylance, magnético desde sua entrada), o espião soviético capturado pela CIA em 1957, em plena Guerra Fria, e que dará o pontapé em todo o desenrolar da história. Uma vez que Abel está preso, os “bastidores do poder” convocam o advogado de seguros James B. Donovan (Tom Hanks) para defendê-lo no tribunal por mera formalidade, já que a intenção desde o início é que Abel seja automaticamente condenado à morte. O problema é que Donovan leva seu trabalho a sério, e insistirá em defender seu cliente – o que acabará levando-o, eventualmente, a se tornar uma peça-chave na negociação que visa trocar Abel por dois norte-americanos também capturados em território soviético, Francis Gary Powers e Frederic Pryor.

Mais uma vez trabalhando com uma história em fatos reais, Spielberg enfim foge do patriotismo exacerbado e o sentimentalismo barato que tanto afetaram suas obras mais recentes, como Lincoln (2012) e Cavalo de Guerra (2011). Aqui, ele dá espaço a um jogo de espionagem baseado em diálogos afiados (não espere um “007” cheio de ação), em que sobra espaço até para críticas à própria paranoia norte-americana, seja na figura do filho do protagonista, que enche as banheiras da casa para reservar água para um possível ataque nuclear, ou no interessante raccord que nos leva de um julgamento (“Todos de pé!”) a um juramento à bandeira dos EUA em plena sala de aula, seguido de um vídeo mostrando os efeitos de uma bomba atômica. Parte dos créditos talvez também se deva à presença inesperada dos irmãos Joel e Ethan Coen co-assinando o roteiro, revisando o original de Matt Charman.

Claro que ainda há arestas que afetam a quase sobriedade completa de Spielberg: se a sequência inicial se destaca pela inexistente trilha sonora e o discreto design de som que ajudam na construção de tensão, outros momentos no decorrer do filme ganham um pianinho genérico de Thomas Newman para dar um ar de grandiosidade a qualquer fala impactante. Já o maniqueísmo evitado na maior parte do longa acaba dando as caras aqui e ali, como no retrato caricato do procurador da Alemanha Oriental, enquanto outras obviedades e exageros também marcam presença – por exemplo, não basta que Tom Hanks receba um olhar de reprovação no metrô considerando-o como um pária, TODO o metrô tem que fazer isso junto.

Tom Hanks, aliás, une seu talento e carisma para, mais uma vez, dar vida ao homem comum com algo de especial – sua primeira cena já o mostra como um rei da argumentação – e que, de repente, se vê em uma situação maior do que ele. Na pele de Donovan, Hanks é puro sinônimo de integridade e caráter, enquanto insiste em defender Abel e procura resgatar tanto o piloto americano Francis Gary Powers quanto o estudante Frederic Pryor, mesmo sob ordens contrárias dos seus supervisores.

Esbanjando técnica e com uma forte história nas mãos, Spielberg consegue cravar mais um bom filme no currículo com Ponte dos Espiões, fazendo ainda, de quebra, bons paralelos da paranoia da Guerra Fria com os dias de hoje, tomados pelo terror pós-11/9 e pela problemática da imigração. Ainda que a mensagem seja sublinhada e negritada pela direção de Spielberg por meio de frases de efeito, travellings e closes “dramáticos”, não deixa de ser uma importante mensagem.