Alguns filmes ficam tão marcados na nossa memória coletiva que às vezes conhecemos passagens importantes deles mesmo sem tê-los visto. Hoje, por exemplo, praticamente todo mundo (e se você não estava incluído nesse meio, sinto muito, mas agora está) sabe que Darth Vader é o pai de Luke Skywalker ou que Bruce Willis está morto no final, ainda que não tenham visto Star Wars ou O Sexto Sentido. Por ser tão impactante e já ter sido tantas vezes referenciada, a cena do chuveiro de Psicose se tornou um desses momentos cinematográficos antológicos. Conhecemos a música estridente, sabemos que há uma silhueta ameaçadora que invade o banheiro e já ouvimos antes o grito de Janet Leigh – além de brincarmos com a possibilidade de ser morto durante um momento tão vulnerável como um simples banho.

E, ainda que saibamos de antemão que uma mulher eventualmente vai ser assassinada no banheiro, ver e rever Psicose continua sendo surpreendente mais de cinquenta anos depois de sua estreia. Isso se deve muito ao trabalho de direção de Alfred Hitchcock, que ousa e brinca com o seu público a cada momento da projeção, reafirmando assim seu famoso epíteto de “mestre do suspense”.

A trama, baseada no livro de mesmo nome de Robert Bloch (que, por sua vez, se inspirou nos crimes de Ed Gein), acompanha Marion Crane (vivida por Janet Leigh), que foge depois de roubar impulsivamente 400 mil dólares de um cliente da firma em que trabalha. Uma tempestade a faz desviar de seu caminho e parar num hotel de beira de estrada, onde é recepcionada por Norman Bates (Anthony Perkis). As consequências sinistras dessa estadia serão investigadas mais tarde pela irmã de Marion (Vera Miles), seu amante (John Gavin) e um detetive particular (Martin Balsam).

psicose janet leigh fan art ilustraçãoCuriosamente, Psicose é diferente dos longas anteriores do diretor. Lançado em 1960, um ano depois de Intriga Internacional, o thriller não possui o mesmo escopo grandioso nem daquele nem de outras obras como Janela Indiscreta ou Um Corpo Que Cai. Com a proposta inicial rejeitada pela Paramount, Hitchcock acabou tendo que financiar o próprio filme, contando apenas com a distribuição do estúdio. Logo, tudo na produção é de uma escala bem menor: filmada em preto-e-branco, em locações nos fundos da Universal, com um modesto orçamento de pouco mais de 800 mil dólares. No set, inclusive, a equipe que acompanhou o diretor foi a mesma de seu programa de TV.

No entanto, o cineasta dominou completamente essas aparentes limitações. Aproveitou o preto-e-branco para buscar referência no suspense As Diabólicas, do francês Henri-Georges Clouzot. Conseguiu convencer dois atores experientes – Anthony Perkis e Janet Leigh –, já consolidados como sucessos de bilheteria, a integrar o elenco por cachês menores que o habitual. E, uma vez concluída a produção, investiu fundo na promoção. O trailer original, por exemplo, em um passeio guiado pelo próprio Hitchcock pelos cenários do filmes, notadamente diz tudo e nada ao mesmo tempo. Além disso, ele exigiu que os cinemas que exibissem os filmes não permitissem a entrada de mais ninguém uma vez iniciada a sessão, para não estragar as surpresas do longa – e o buzz gerado foi tanto que filas e filas começaram a se formar para assistir Psicose.

Afinal, as surpresas e contravenções orquestradas por Hitchcock são o que garantem o selo de qualidade do filme, e não acompanhá-las na íntegra seria acabar com o encanto da obra. Logo na primeira cena, em que Marion Crane está na cama usando apenas um sutiã branco e acompanhada do amante, o diretor já quebrava tabus instalados pela censura do Código Hays, que na época já caía em desuso. (Curiosidade: a privada que aparece mais tarde em cena no Motel Bates também seria a primeira a ser vista em um filme mainstream nos Estados Unidos.)

A maior subversão de Psicose, no entanto, reside em sua estrutura. Desde que começamos a acompanhar Marion, mesmo que ela cometa atos moralmente questionáveis, é com ela que criamos empatia. Hithcock conduz todo o primeiro ato de forma a nos fazer acreditar que ela é nossa protagonista, e que acompanharemos sua trajetória lidando com a culpa pelo roubo e talvez sua eventual redenção. É o que dá a entender, por exemplo, o uso dos offs que representam os pensamentos paranoicos de Marion, além da pequena subtrama que envolve o policial na estrada. Mesmo quando ela está enfim no Motel Bates, conversando durante o jantar com Norman, o diálogo entre os dois não só estabelece uma relação entre os personagens como também acende nela a fagulha do arrependimento pelo crime.

psicose norman bates anthony perkinsE é então que surge a tal cena icônica do chuveiro para puxar nosso tapete de vez: Hitchcock ousa matar a protagonista assim, de repente, com pouco mais de 40 minutos de filme. A trilha sonora brilhante de Bernard Hermann, que desde o começo insinua que algo perigoso vai acontecer, enfim explode em acordes, potencializando ainda mais o momento. A intenção é claramente desestabilizar e manipular o espectador, que investiu emocionalmente na personagem, e o diretor alcança isso com sucesso. Ele fará algo similar mais adiante, ao sermos apresentados ao detetive Arbogast, apenas para vê-lo ser uma vítima da mesma faca nas escadas da mansão Bates.

A manipulação de Hitchcock não é desonesta; na verdade, ela é a substância que faz do filme o que ele é. O diretor constantemente brinca com nossas expectativas, usando a seu favor toda sua compreensão da linguagem cinematográfica para criar uma experiência inusitada e assustadora. Se pensarmos bem, sabemos que há algo de errado desde que vemos a figura de Norman Bates pela primeira vez – e não só porque ele é meio esquisitão. Hitchcock sugere isso constantemente através do uso de sombras e reflexos que indicam o duplo, ou da quebra de eixo repentina que revela Bates em um novo enquadramento durante a conversa com Marion, com um dos seus pássaros empalhados surgindo ameaçador ao fundo. Nesse sentido, a atuação de Anthony Perkins é fundamental ao estabelecer uma certa fragilidade e até simpatia no personagem e, aos poucos, sutilmente, revelar sua instabilidade mental e emocional.

Mesmo assim, é apenas no final de Psicose que descobrimos a verdade sobre Norman Bates e sua perigosa mãe – e, mais uma vez, Hitchcock conduz a revelação com impacto. Não é à toa que a cena em que a irmã de Marion, Lila, encontra o cadáver no porão foi refilmada tantas vezes, até alcançar o efeito desejado pelo diretor.

Se há um equívoco no filme, trata-se do monólogo do psiquiatra depois da grande descoberta. Talvez por ter ousado tanto no decorrer do longa e investido nos segredos da trama, Hitchcock opta por uma solução altamente expositiva, em que o médico vivido por Simon Oakland aparece basicamente para nos explicar todo o filme, numa postura bem canastrona. Posso até estar enganado ou quem sabe exigente demais, mas realmente acredito que esse detalhe é a única coisa que impede Psicose de alcançar a perfeição.

Ainda assim, o longa continua marcante e deixou um forte legado até hoje. Várias sequências nos anos 80 e, atualmente, uma série de TV (Bates Motel) retomaram a história de Norman Bates. Além disso, o filme inaugurou o que ficou conhecido como subgênero de terror slasher, aquele em que psicopatas doidões ficam perseguindo suas vítimas por aí, seja em Halloween, Pânico ou mesmo Sexta-Feira 13. A cena do chuveiro também continua assustadora e violenta até hoje, mais até que filmes recentes que investem em quantidades absurdas de sangue maiores que o pouco que escorre pelo ralo da banheira do Motel Bates.

Afinal, Psicose explora, acima de tudo, nossa vulnerabilidade e medo, seja através dos personagens em cena ou das reações causadas pelas brincadeiras de Hitchcock na construção de seu filme. Não é à toa que Janet Leigh ficou traumatizada e nunca mais conseguiu se sentir inteiramente segura tomando uma ducha depois de ver o filme.

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